
“Quando se perde o peso da vida, tudo se torna teatro — até a compaixão.” — Friedrich Nietzsche
A frase de Nietzsche ecoa com precisão perturbadora em nossa época. Quando adultos depositam em bonecas o amor que só o humano pode oferecer, o problema já não é a solidão — é a recusa em viver o prazer e a dor da existência.
Recentemente, uma mulher levou um bebê Reborn a uma UPA em Mato Grosso pedindo atendimento médico para a boneca. Não foi a primeira vez que a imprensa noticiou algo assim. O episódio, ao mesmo tempo cômico e trágico, revelou o que a sociedade tenta negar: o desejo de substituir o vínculo humano por uma réplica inofensiva. Um bebê de silicone que não sente fome, não adoece, e jamais vai envelhecer. O sonho perfeito de quem não suporta o risco da vida.
Nas mãos de uma criança, o boneco é mundo em construção — espaço onde a imaginação brinca com o impossível. Nas mãos do adulto, porém, ele muda de função: deixa de ser encantamento e vira refúgio. O bebê Reborn, com pele artificial e expressão serena, é o útero recriado fora do corpo — abrigo da carência e refúgio do isolamento. Não é ternura, é anestesia.
Um adulto na meia-idade embalando uma boneca que não respira é a metáfora perfeita dessa recusa do real — o amor sem dor, o deleite sem presença. Sem ferida, não há encontro; sem resistência, não há relação.
“Não há amor à vida sem o desespero de viver.”
— Albert Camus, O Mito de Sísifo.
A tentativa de eliminar a dor extingue também a intensidade. Bonecos, imagens estáticas, inteligências artificiais afetuosas — todos respondem ao mesmo desejo: uma vida sem atrito. Mas uma vida sem atrito é uma vida sem pulsação. Substituir o humano por objetos dóceis é renunciar à própria condição viva.
O prazer da existência está justamente no que escapa ao controle: o olhar que responde, o corpo que erra, o outro que nos desafia. É aí que o humano se realiza — no contato, na imperfeição, na ferida que prova que existimos. Hoje, eliminamos a negatividade da dor em nome de uma positividade anestesiada.
E cada vez que um adulto o toma nos braços, confirma-se o diagnóstico: a infância foi perdida — tarde demais para uma volta ao tempo encantado.
Sei que em alguma esquina da memória ainda adormece o desejo de ser criança outra vez. Mas quando o brincar deixa de ser criação e vira fuga, a civilização volta ao berçário. É o epitáfio de uma geração atordoada — que, temendo o embate de viver, rendeu-se.

*Walter Pinto Filho é Promotor de Justiça em Fortaleza, autor dos livros CINEMA – A Lâmina que Corta e O Caso Cesare Battisti – A Confissão do Terrorista. www.filmesparasempre.com.br
 
								






 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													 
													