Dois amigos. Por Angela Barros Leal

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Há quantos anos os dois amigos não se encontravam? Talvez uns 40? –, a esposa arriscara, tentando forçar a memória do marido, e ele dizendo que não, que tinha sido antes, muito tempo antes. Uns 50 anos? – tentara ela outra vez, arrumando a mesa para o jantar, e ele dizendo não, acho que mais, uns 55.

Fazendo as contas, a idade dos dois amigos seria por volta dos 16 ou 17 anos quando se separaram. Um deles indo embora para o Rio de Janeiro, estudar na Escola Naval, o outro permanecendo em sua terra, preparando-se para o vestibular na Universidade Federal. Correta então a hipótese dos 55 anos de tempo e espaço, colocados entre ambos.

É muito tempo, admirara-se a esposa, que conhecia também o amigo, todos eles vizinhos de rua, de infância e de adolescência. Uma vida, 55 anos, como é que pode?! O marido não falara mais nada, absorto no noticiário da televisão. Não era pessoa saudosista, de perder tempo pensando no passado. Passou, passou.

Pois o amigo estava de volta, em uma das raras visitas que fizera aos familiares, ao longo de meio século. Tinha voltado outras vezes, mas uma sequência de compromissos do casal que ficara, e que também passara temporadas morando fora, impedira que os dois se encontrassem. Dessa vez, ia dar certo.

Como de fato se deu. Marcaram um almoço em um clube da cidade. Eram do tempo em que se fazia elegante frequentar clubes sociais, e não tinham esquecido o cenário da adolescência. Sentaram os dois frente a frente, e fizeram os pedidos para o almoço. Quando a esposa chegou, a conversa já avançava, velas desfraldadas, pelo tempo a dentro. Ela conhecia todas as histórias, tinha ouvido mais de uma vez várias delas, mas era bom escutar de novo, contadas por outra voz. 

As entradas indevidas nas festas, no clube vizinho à casa deles. As festas de Carnaval no clube. A sensação de caminharem descalços nas pedras quentes da rua onde moravam, antes de serem impermeabilizadas pelo asfalto. A descida para o mar, a dois quarteirões de distância, na hora em que chegavam os barcos de pesca.  A dificuldade de dinheiro para comprarem os cigarros que fumavam escondido.

E as merendas fartas preparadas pelas mães, na casa de um e outro, no meio da tarde. E o caramanchão coberto, no amplo terreno da casa do amigo, onde os pais e tios jogavam baralho. E o dia em que o marido e um primo do amigo, correndo em um lote deserto da vizinhança, despencaram no fundo de um poço, muitos metros abaixo da superfície, tendo sido necessária a ajuda do Corpo de Bombeiros para retirá-los lá de dentro.

Os comos, os quandos e os porquês dos 55 anos de ausência intercalaram o serviço do almoço, entre a entrada e o cafezinho, até depois da sobremesa. O amigo optara pela vida nos mares, ascendera na carreira, servira em vários postos, no Brasil e no exterior. O marido viajara muito também, crescera na profissão, sempre regressando para sua terra. Igualavam-se na aposentadoria, que os fixara onde se encontravam agora.

Deviam ver um no outro, sentados frente a frente, como que o reflexo oposto das vidas que poderiam ter vivido, caso as opções tivessem sido trocadas entre si: o amigo privilegiando sua cidade natal, mantendo-se no meio familiar, com ausências ocasionais; o marido transitando em mares alheios, enraizando-se, por fim, em portos externos, ambos com outras esposas, outros filhos, outras famílias.

Percebiam os danos que a impiedade do tempo tinha causado em cada um. Os cabelos brancos, a escassez dos fios, as rugas feito cicatrizes nos rostos. Os danos eram sentidos nas perdas contabilizadas, seguindo a ordem lógica dos avós, dos pais e, mais recentemente, dos irmãos deles, que começavam a se despedir. 

Foi quando viram os olhos úmidos do amigo, no instante em que ele pegara um guardanapo, e encostara o papel no canto interno dos olhos. Muita luminosidade no mar, ele justificara. O vento salgado, a luz do sol, minha vista não é a mesma, ficou assim, sensível.

O marido e a esposa apressaram-se a concordar. Sei, sei! – entoaram em voz conjunta, é assim mesmo! – embora o casal não tivesse a vivência de mares, portanto sem desculpas para os guardanapos que já aproximavam, igualmente, ao canto interno dos olhos deles. 

Não podemos mais ficar 55 anos sem nos ver! – dissera o amigo, e riram os três, primeiramente meio sem graça, e depois com muito gosto, enquanto o prestimoso garçom os fotografava, registrando um momento único nessa piada cósmica chamada Vida.

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