Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus
Essa é a história curtinha que me contaram, sobre dois Raimundos nascidos na mesma cidade litorânea. Haviam crescido juntos, juntos haviam enfrentado a sofrida travessia dos expatriados do interior para a capital, vindo a ser, na idade adulta –, um, Raimundo empresário e empreendedor; outro, Raimundo advogado e, ao longo de quatro décadas, contador dos negócios do amigo Raimundo.
“Mundo, mundo, vasto mundo. Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução”, poetou Carlos Drummond de Andrade. Para ambos, a rima era a solução: eram dois Raimundos que se queriam bem, homens “sérios, simples e fortes”, como qualifica o poeta em seu poema, e que por 40 anos trabalharam próximos, em espírito de perfeita fraternidade.
O passar de oito décadas coroara os dois com uma tonsura rala de cabelos brancos, sem tirar deles a vitalidade. Naquele dia, um deles pressionara o botão de chamada do elevador para o 11º andar do prédio comercial onde se encontravam, e onde tinha sede a empresa do Raimundo empresário, empreendedor.
Antes de chegarem ao amplo hall do elevador, ainda na sala de reuniões haviam conversado longa e demoradamente sobre questões contábeis. Sobre essas, o Raimundo contador impunha sua lei, que harmonizava com o pensamento do Raimundo empresário: não existe contabilidade criativa. Imposto caro é que não foi pago.
Findos os assuntos de trabalho, haviam enveredado pelos temas antigos, os mesmos de sempre, em que costumam se envolver os amigos de longa data para quem o dia de ontem, ou de um ano atrás, não interrompe o ritmo dos pensamentos trocados.
Falaram sobre tudo e sobre nada, os dois Raimundos, rememorando os velhos tempos. Os filhos, as esposas, os netos, os projetos de vida – pois ambos ainda os tinham –, até retroceder mais ainda, para o início da amizade entre eles, para a rotina das escolas, para o burburinho do mercado, para as brincadeiras de ruas e calçadas, para os mergulhos no rio de águas salobras que lhes servia de mar.
Se um Raimundo saltava algum detalhe das aventuras duplas, ou se, por um escorregão da memória, acaso se enganava em algum ponto das histórias épicas que repartiam, mais que depressa o outro Raimundo tratava de corrigir ou de complementar.
Era uma hora do recreio que reviviam juntos, sem terem a quem prestar contas: o percurso por esse mundo pertencia a eles, produtos da mesma caixa, lado a lado nas prateleiras, em uma amizade sem data de vencimento.
Aqui e ali, um riso, uma gargalhada, a escapadela de uma lágrima embaçava as lentes dos óculos, sobreviventes que eram desse país distante chamado passado.
O elevador chegara rápido demais ao 11º andar. Sempre chegava rápido demais, abrindo as portas em um bocejo convidativo, que ambos davam um jeito de evitar. As portas se fechavam, o elevador obedecia a um novo comando, vindo de andares acima ou abaixo, e o fio da conversa entre os Raimundos se alongava, interminável, diante do painel de chamada, mais uma vez iluminado.
A última conversa que mantiveram tinha sido assim, entre o repetido abre e fecha das portas do elevador, por fim sustentadas com a mão por um dos Raimundos, que espichava ainda a pontinha de uma história, a concluir.
Até logo, se cumprimentaram, até logo, em um abraço de despedida.
Desceu um Raimundo, o outro ficou, ambos ligados às reticências que dariam continuidade às conversas na próxima visita –, que não chegaria a acontecer. A pandemia contabilizou a viagem final do Raimundo advogado, contador, e deixou o Raimundo empresário, empreendedor, com as reticências às soltas e a tristeza amarrada ao pé das portas duplas do elevador.
Continuaria trabalhando com a empresa do amigo, mantendo a mesma orientação. Nunca pagara, como não pagaria, multa alguma por omissão fiscal, orgulho profissional de ambos. Entretanto, mantendo a postura firme de sempre, seguiria parcelando, a cada vez que entrava no elevador, a multa impagável da falta sentida do amigo Raimundo.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder