Governo Lúcio, 20 anos: A crônica da traição anunciada

COMPARTILHE A NOTÍCIA

O ex-governador Lúcio Alcântara, hoje mais voltado para seus livros e para a presidência da Academia Cearense de Letras do que para a política. Foto: Divulgação Assembleia Legislativa

Neste 2022, fará 20 anos que Lúcio Alcântara disputou e venceu a mais difícil eleição para governador do Ceará: ínfimos três mil votos tiraram José Airton (PT) do Palácio da Abolição com a minha discreta, porém atuante colaboração, como bem sabe quem realmente sabe (naqueles tempos, eu já fazia campanha de massa na web. A diferença é que, por ineditismo, não se tinha ainda os meios para medir o tamanho do “estrago” que fizemos. Mas os dois então candidatos sabem).

Três mil votos! Não dá uma Cidade 2.000 de diferença. Embora fosse frágil a performance do candidato de oposição e maior ainda a disparidade absurda ente os recursos empregados numa campanha e outra, José Airton tinha ao seu lado um cara de grande talento, um saudoso colega, o publicitário Orlando Mota, que soube superar as limitações com seu reconhecido engenho e fez bem feito o que pode fazer.

Lúcio e Tasso Jereissati, em 2003: uma relação que de amistosa e aliada passou para o rompimento.

Lúcio assumiu o governo do Ceará para uma gestão que pode ser descrita com uma frase e um número: foi concluída com 76% de aprovação popular. Pegou o Estado com as contas apertadas, à beira do esgotamento, e sem o direito de colocar o chocalho no pescoço do bode certo: seu antecessor, Tasso Jereissati, era de seu partido e também companheiro de chapa (foi eleito senador e cumpriu bom mandato, como sempre).

De certo modo, Lúcio salvou, com uma gestão incialmente franciscana, a imagem de Tasso, consagrada como a de um gestor extraordinário (competente, eu diria sem exageros): se a oposição tivesse vencido, todo aquele martírio que Lúcio enfrentou calado, pagando com silêncio o apoio recebido, teria vindo à tona. José Airton teria feito com Tasso o que Lula fez com FHC: o tornaria maldito por ter concluído mal um governo que, em seu conjunto, legou numerosos, inegáveis avanços.

Não vou me dar aqui a um balanço tardio de um governo concluído há 14 anos. Não sou historiador e, como disse, uma aprovação de 76% nos dispensa de esforço argumentativo, embora sua história, contada pelos vencedores e acatada pelos oportunistas, não tenha recebido ainda uma versão com a devida honestidade – o que não é exceção na desqualificada cultura política brasileira, mas sua praxe.

Ex-senador, em-ministro e ex-governador Beni Veras: o guru da geração Tasso tinha olhar de águia, avaliações curtas e certeiras.

Então, falemos de como tudo terminou, pois foi onde os rumos se definiram. Não foi um amargurado preterido quem me disse isto, mas o melhor amigo de Tasso Jereissati, Beni Veras, com quem tive a honra de trabalhar. Quando Cid Gomes foi eleito, ele me disse por ocasião de um encontro casual:

— “Ricardo, o erro do Lúcio foi noivar com o Lula e não casar!”

Grande Beni: poucas palavras, muita sabedoria.

Volto a fita um pouco. Era ainda a terceira semana de governo. Quando vi o desenho do primeiro escalão nomeado por Lúcio, cujas posições estratégicas (todas, não somente algumas) estavam sob total controle do grupo de Tasso, entrei no gabinete do governador a chamado dele e, ciente de que lhe deveria lhe dizer uma boa verdade, falei, olho no olho:

— “O senhor está entregando 95% da força de decisão de seu governo nas mãos do Tasso achando que ele vai lhe apoiar para um segundo mandato. Pois anote: daqui a quatro anos ele vem aqui lhe cobrar os outros 5%”.

Dito e feito.

Adianto a fita novamente. Três anos e meio depois, eu já havia pulado fora do governo de Lúcio há dois anos (tivera sido seu Assessor Especial) e ele me convida a seu gabinete. Ali, a menos de cem dias do prazo para mudança de partido, percebi nele, por uma leitura oblíqua de seus murmúrios, o temor de não ser apoiado por Tasso para a reeleição.

O então governador Lúcio e o então presidente Lula em encontro em Fortaleza no ano de 2004: teve paquera, mas sem namoro.

Talvez cogitasse mudar para a base do governo Lula e receber seu apoio. Naquela oportunidade, eu sabia, por fontes seguras, dos insistentes apelos nesse sentido, vindos de Tarso Genro (ministro da Justiça), mais de uma vez, e de Luis Ducci (da Secretaria-geral da Presidência) – em nome de Lula, obviamente.

O que ouvi dele, guardo comigo porque não me pertence e sim a ele. Mas digo o que falei, então:

—  “Para o PT o senhor não deve ir, nem que os trotskistas lhe aceitem. O figurino é outro. Vá para o PTB, que está na base de Lula e tem uma composição mais heterogênea. De lá, você se lança. Mas se prepare para ser carimbado como traidor pelo resto de sua vida”.

Esta parte, da lealdade política, ao fim, penso eu, foi o que mais pesou na sua decisão de permanecer no PSDB – não, claro, por ter ouvido de mim o alerta, mas por coerência ao seu padrão ético e, principalmente, ao seu estilo político, que nunca foi de enfrentamento (Lúcio Alcântara é um conciliador compulsivo).

Resultado: apostou sua lealdade na lealdade de Tasso Jereissati e Ciro Gomes e, como se diz por aí, “se deu mal”: retiraram, quando o governador não mais tinha tempo legal para romper, o apoio ao seu direito natural à reeleição — uma expectativa previsível, considerando o elevado índice de aprovação de sua gestão.

Filho de Lúcio, Leo Alcântara na Tribuna da Câmara dos Deputados quando exercia mandato federal e seu pai governava o Ceará.

O álibi para a rasteira estava no gatilho – um desagradável assunto que transbordava do âmbito político para o espaço familiar: os frequentes rumores de que o deputado federal Leonardo Alcântara praticava tráfico de influência no governo de seu pai. Havia sinceridade nisso? Vejamos. Um dia, logo após Tasso e Ciro lhe terem comunicado numa reunião em Brasília que não apoiariam sua reeleição, mas a candidatura de Cid Gomes, Lúcio voltou a me convidar para uma conversa a sós. Pediu que voltasse a colaborar profissionalmente, assumindo a responsabilidade sobre sua propaganda eleitoral em rádio e televisão.

Aceitei, claro. Analisamos o quadro. Não me furtei, contudo, a alertá-lo sobre o tamanho da dificuldade em produzir o resultado desejado:

— “A equação é bem simples: aquele que Lula apoiar para governador estará no segundo turno. Se as maiores lideranças locais, Tasso e Ciro, também apoiarem esse nome, então, nem segundo turno haverá”.

Dito e feito.

Na mesma ocasião, toquei pela primeira vez no tema delicado, familiar. Constrangido, mas o fiz porque era um aspecto incontornável. Perguntei como ele pretendia enfrentar o problema. Abro aqui uma exceção para revelar o que ouvi dele, ainda que esta verdade não me pertença, porque ela lhe faz justiça. Ele respondeu:

—  “Ricardo, eu chamei aqui neste gabinete o [fulano de tal – tucano do bico duro] e pedi a ele o tal do ‘Dossiê Leo Alcântara’. Isso faz meses. Não me trouxeram”.

Quer dizer, verdade ou não, sobre aquilo nunca houvera, de fato, vontade de reparação política: era somente um instrumento de pressão eleitoral.

Insisti:

— “Mas o senhor cobrou?”

E ele me respondeu com uma frase curta, de ironia enigmática:

— “Não trazem. As telhas não deixam”.

Para bom entendedor, nem mais uma palavra foi necessária e o papo ficou por aí.

Cid Gomes em primeiro plano. Ao fundo, o imrão Ciro, o líder do grupo político.

O resto é História: Cid Gomes venceu e fez um governo igualmente bem avaliado, elegendo como sucessor outro talento político, Camilo Santana. As premissas de boa gestão fundadas sob a liderança de Tasso em 1987 foram preservadas, inclusive com a participação decisiva de figuras carimbadas do PSDB, enquanto ele próprio, ao tentar um novo mandato de senador, foi derrotado por aqueles que ele houvera apoiado contra o candidato de seu próprio partido: elegeram em seu lugar para o senado dois aliados de Lula, que veio na ocasião ao Ceará cobrar a fatura do apoio dado e daqui saiu com a dívida liquidada.

Eis, enfim, em um breve relato, em tudo semelhante a muitos outros, sobre a política como a arte de esmagar vaidades e triturar reputações. Tem mais em 2022. Portanto, segue o jogo.

Ricardo Alcântara, o autor do artigo, é publicitário, eescritor, conduziu o marketing de diversas campanhas eleitorais e assina artigos no Focus.

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

AtlasIntel: entre criminalidade e economia estagnada, Lula vê erosão no apoio e avanço de Tarcísio

Chiquinho Feitosa reúne Camilo, Evandro e Motta em articulação para 2026

A disputa no Ceará e os passageiros do carro dirigido por Ciro Gomes

Do cientista político Andrei Roman (AtlasIntel): Lula não é favorito em 2026 porque perdeu o ‘bônus Nordeste’

Vídeo de Ciro no centrão: discurso contra Lula e aceno à centro-direita e centro-esquerda

O roteiro de conversas e articulações que aponta Ciro candidato no Ceará

O que você precisa saber sobre a venda da Unifametro para o grupo que controla a Estácio

Disputa entre Ceará e Pernambuco derruba comando da Sudene e escancara guerra por trilhos e poder no Nordeste

Guararapes, Cocó e De Lourdes têm a maior renda média de Fortaleza. Genibaú, a menor

Moraes manda Bolsonaro para prisão domiciliar após vídeo em ato com bandeiras dos EUA

Paul Krugman: Delírios de grandeza (de Trump) vão por água abaixo

Pesquisa AtlasIntel: Crise com Trump impulsiona Lula e desidrata Bolsonaro

MAIS LIDAS DO DIA

O instante que mudou a arena; Por Gera Teixeira

O julgamento que vai redesenhar 2026