Santo remédio; Por Angela Barros Leal

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Padre Cícero escreveu à mão, no dia 13 de outubro de 1931, um bilhete endereçado à afilhada Ritta Angela: “Recebi sua cartinha. Aconselho que soffra com paciência, será grande sua recompensa. Tome cosimento de batata de purga, ipecaconha e jarrinha. Reze o rosário da Sua Santidade Virgem todos os dias com sua família. Que Deus os abençoe”.

A outro afilhado, Joaquim Guilherme da Silva, dois dias antes havia endereçado a seguinte mensagem: “Recebi sua carta que respondo, a mão de Deus o proteja um tudo de sua vida, tome batata e pega pinto e reze o rozário pelas almas”.

O conteúdo das receitas vinha, muito provavelmente, do livro publicado em 1890 pelo médico polonês que fizera carreira no Brasil, Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, sob o longo e autoexplicativo título Diccionario de medicina popular e das sciencias accessorias para uso das familias, contendo a descripção das Causas, symptomas e tratamento das moléstias; As receitas para cada molestia; As plantas medicinaes e as alimenticias; As aguas mineraes do Brazil, de Portugal e de outros paizes; e muitos conhecimentos uteis.

O livro está na biblioteca do padre. Os bilhetes, encontram-se expostos aos visitantes do Memorial Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, hospedados temporariamente na sede da Prefeitura Municipal, enquanto não é concluída a reforma do prédio oficial.

Nem sempre o padre escrevia à mão. No dia 18 de outubro de 1932, por exemplo, algum dos seus assessores datilografara uma carta de seis páginas, dirigida ao “velho amigo Dr. Tristão de Athayde”: pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, escritor convertido ao catolicismo, e que viera a se tornar um paladino da Igreja Católica no Brasil.

O assunto da correspondência era a preocupação do Padre Cícero com a questão da reforma constitucional, assunto grandioso, em teoria muito acima e além do seu pequeno Joazeiro. “De facto” – ditara ele ao secretário –, “os legisladores de 91, infiltrados do vírus pernicioso do positivismo, deram-nos uma constituição athéa, carecida de orientação prática, alheia às necessidades brazileiras”.

Referia-se ele à Carta Magna promulgada em 1891, sem a invocação divina. Esperava que a elaboração de uma nova Constituição (que viria dois anos mais tarde, 1934, no ano mesmo de seu falecimento), previsse maior aproximação de Deus e “dos ensinamentos da moral christã”.

Por acaso, recebi uma cópia virtual da referida correspondência, pertencente ao acervo de Geová Sobreira, como gentileza de um ilustre vizinho desse espaço: Dr Paulo Elpídio, produtor incansável de textos de valor histórico, textos cultos, irônicos –, ouso dizer quixotescos. A carta foi datilografada em máquina de escrever, tendo sido o Padre Cícero, ao que consta, o responsável pela compra da primeira máquina de Juazeiro, adquirida para prestar serviço aos Correios e Telégrafos da cidade. As folhas exibem ajustes e correções manuscritas, possivelmente acrescentadas após leitura em voz alta para o padre.

Apesar de atormentado pela catarata, aos 88 anos de idade não parecia afetada a agudeza da sua mente, ocupada em produzir recomendações que pudessem conter uma essência espiritual, visando, porém, resultados terrenos.

Receitava ele suas soluções para o Brasil (“Desejaria que fosse criado um tribunal permanente, com as atribuições de organizar os planos para a sollução dos differentes problemas da nação, ou seja, o plano geral da administração do Paiz”), com a mesma segurança com que receitava “cosimento de batata de purga, ipecaconha e jarrinha”, ou “beber batata e pega pinto” para a saúde do corpo.

Serviam estes para expulsar o que por dentro fazia mal. Ausentes outras alternativas, as ervas se configuravam como farmácia viva. Ofereciam em forma de chás, xaropes ou cataplasmas, os laxantes, os diuréticos, os indutores do vômito, responsáveis pela purga. Receitados pela letra do Padre Cícero, ganhavam o valor extra dos milagres.

E a jovem historiadora, responsável pela mostra temporária do Memorial, aproveita para me apontar falhas perceptíveis no tecido de uma das batinas do padre, exposta por inteiro sob a proteção do vidro: as falhas evidentes se deviam à ação das beatas, retirando fios da batina do padre com o objetivo de preparar, com esses fios, os chás curativos… Com toda certeza, mais um santo remédio.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

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