— O que o senhor é mesmo?
Ao ouvir aquela pergunta, virei-me para trás, cuidadosamente — sabia que havia uma baioneta, na ponta de um fuzil, bem próxima das minhas costas. Olhando então diretamente para mim, o soldado da Polícia Militar do Paraná, que me prendera minutos antes, repetiu a pergunta. Diante da minha resposta de que eu era estudante, ele completou:
— Pensei que fosse oficial e que isso aqui era um treinamento.
Quase sem acreditar no que estava ouvindo, perguntei se podia me soltar. Sua resposta foi direta:
— Posso não. Cumpro ordens, e a que eu recebi foi de levar quem eu prendesse até o comandante que está ali na frente.
Não cabe aqui analisar o modo de funcionamento daquela corporação militar. Embora esse tema seja relevante, pretendo tratá-lo noutra oportunidade. Agora, parece-me mais importante esclarecer o que estava acontecendo ali.
Tratava-se de uma ação repressiva para impedir a realização de um Congresso Regional da União Nacional dos Estudantes (UNE), que ocorreria na Chácara do Alemão, nas proximidades de Curitiba. Ao chegar, na condição de candidato da chapa Unidade e Luta, que concorria à diretoria da UNE, disse logo ao colega que me acompanhava que achava que seríamos presos. E não era nenhuma premonição. Assim que vi aquele sítio, veio-me à mente a imagem de Ibiúna, onde fôramos presos tentando realizar o XXX Congresso da UNE, em formato nacional. As condições eram muito semelhantes, ainda que em proporções diferentes. Nos dois casos, havia um ponto em comum: as chances mínimas de manter, numa zona rural, uma reunião com tantos participantes em segredo.
Não deu outra. Menos de uma hora depois, ecoaram gritos: “Polícia! Polícia!” Saímos correndo para todos os lados. Corri cerca de quinhentos metros até visualizar uma linha de soldados barrando meu caminho. Um dos militares destacou-se da fileira, aproximou-se de mim, apontou o fuzil com uma baioneta na ponta, deu-me voz de prisão e ordenou que eu caminhasse, com as mãos na cabeça, rumo a um local que ele indicou.
Depois de alguns minutos, chegamos a um ponto onde estavam se concentrando as pessoas que iam sendo presas. Ficamos ali por algum tempo, até sermos colocados em caminhões de carroceria fechada, tipo baú, que nos conduziram para um quartel da PM e, em seguida, para um presídio.
Após um minucioso interrogatório conduzido pela Polícia Federal, dos 42 estudantes aprisionados, 15 foram retidos e os demais libertados — sem que nos fosse comunicado qual critério orientou essa triagem. Era evidente, no entanto, que ali ficaram os principais líderes do movimento estudantil do Paraná. Eu estava entre os 15, mas como Iran Vieira Dias, nome que constava nos documentos falsos que eu usava desde que fora decretada minha prisão preventiva por participação no Congresso de Ibiúna.
Até me soltarem, um ano depois, meus carcereiros não desconfiaram da minha verdadeira identidade, nem do que aquele personagem fictício teria a ver com a UNE.
O Congresso Regional do Paraná foi dissolvido à força naquele 16 de dezembro de 1968. Com a decretação do AI-5, três dias antes, no dizer do jornalista Elio Gaspari, a ditadura havia passado de envergonhada a escancarada. No entanto, mesmo sob o império da repressão desamarrada de suas últimas peias, nos demais estados brasileiros os representantes dos universitários realizaram seus congressos — em diversos e criativos formatos — elegendo uma nova diretoria da UNE para conduzir a luta nacional pelos direitos estudantis e contra o regime ditatorial.
Com três chapas concorrendo, a vitória foi da Unidade e Luta, presidida por Jean Marc, e composta pelos seguintes diretores: Honestino Guimarães, João de Paula, Valdo Silva, Ronald de Oliveira, Doralina Rodrigues, Humberto Câmara, Helenira Rezende, Amálio e Nelson Tadeu.
A segunda chapa mais votada foi a Nova UNE, com Rafael Di Falco como candidato a presidente — substituindo José Dirceu, que, juntamente com Luiz Travassos, Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis, seguia preso após o Congresso de Ibiúna.
O terceiro lugar foi da chapa Integração e Luta, liderada por Marcos Medeiros.
Os universitários brasileiros davam, assim, mais uma demonstração de resistência, enfrentando e vencendo mais uma tentativa da ditadura militar de destruir a UNE.
Para mim, o desafio maior passou a ser evitar a descoberta da minha verdadeira identidade. Meus colegas de prisão, que sabiam da minha situação, deram-me cobertura e prestaram toda a solidariedade necessária para que eu mantivesse o disfarce, mesmo naquelas circunstâncias de extremo risco e tensão.
Mas o que aconteceu durante aquele ano, em que — como Iran — passei no Presídio do Ahú, fica para outro momento.
