Temóteo; por Augustino Chaves

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Clube Recreativo de Nova-Russas, um sábado de 1953. Temóteo de paletó branco e gravata borboleta, com cigarro entre os dedos, ao lado da mulher, Elimar.

A cópula forma-conteúdo leva ao caminho da Arte. A incongruência entre os dois fatores diminui o índice estético tanto quanto diminui o índice ontológico.

Somos forma. Somos conteúdo. O resultado desse entrelaçamento somos nós para o Mundo.

Ele apresentava-se na tríade clássica dos anos 20: chapéu, gravata, paletó. A marca foi a gravata-borboleta. Elegância.

Temóteo. Nascido no sertão, sertão do Ceará. O ano era 1910, 22 de agosto de 1910. Vila Curtume. Tornou-se depois o Município de Nova-Russas.

Vovô Temóteo representa o homem bem-sucedido daquele torrão, daquelas circunstâncias adversas mas não impeditivas.

Sua construção não se deu em grandes lances. O dia a dia foi sua aposta, a médio-longo prazo. A soma dos dias. Sendo esse o caminho, cada ato contava, tinha o seu valor mínimo, mas tinha; cada ato haveria de ser regido pelo equilíbrio, cada ato importava. Haveria de ter tempo.

Daí porque tinha que viver o presente, e saber viver o presente é alcançar instância próxima e intangível.

Miragem de sol forte quando o horizonte tremula, miragem ao percorrer as rodagens atravessando as securas da terra.

Viver o presente: espécie de elevação em relação ao passado e ao futuro.

Hoje a avenida onde está plantada aquela casa grande assobradada leva o seu nome: Avenida Tabelião Temóteo Chaves.

Às limitações arraigadas daquele sertão do início do século somou-se uma fatalidade: o acidente que levou seu pai quando aquela criança tinha doze anos de idade. A penúria financeira. O mínimo à sobrevivência.

Deixou Nova-Russas aos 18 anos, havia a sina de servir o Exército. Fortaleza. Morou cinco anos na capital de seu Estado.

Retornou a Nova-Russas. Atravessou décadas sendo
o Tabelião daquela então Comarca.

Casou com Elimar, casamento que foi seu maior acerto. Tiveram oito filhos.

Vovô sempre afetuoso com a mulher e com os filhos. Sempre. Dele recebi beijos. Ao lado da elegância, essa é sua destacada marca.

O afeto máximo foi exercido quando ia visitar com frequência marcada o filho Luís, seu primogênito, meu pai, nas lonjuras do Seminário de Ipuarana, em Campina Grande, naquela época a viagem equivalia a uma odisseia. Lustosa da Costa me falou que somente o pai dele e o pai do papai visitavam e levavam presente aos filhos naqueles ermos.

O que para mim seria uma falta não registrar: aquele homem que não frequentou escola tinha livros em sua casa: a Coleção de Literatura Universal, vários livros, vermelhos, bem encadernados; os livros de Jorge Amado, de Érico Veríssimo, autores americanos e tantos outros. Nunca leu um livro. Mas lhes sabia a importância. Mas lhes queria em sua casa. Nunca entrei em qualquer outra casa de Nova-Russas que tivesse livros.

Essa paixão por livros chegou imensa, através do papai, seu filho primogênito, até a minha pessoa. Muito obrigado.

É claro que Seu Temóteo viveu a Política. Quem não vive a Política deixa de entender seu tempo. Amigo de Virgílio Távora, que quando viajava para aqueles lados hospedava-se em sua casa.

É claro que seu ídolo era Juscelino, e ao lado dele ouvi os discursos dessa estrela cujo brilho não se apaga que foi nosso Presidente JK.

É claro que sempre vinha a Fortaleza, cultivava amigos, a reunião dos tabeliães.

É claro que teve fazendas, que tinha carros e tinha chofer.

E mais claro ainda: manteve a elegância, nos gestos e na tríade chapéu-gravata-borboleta-terno.

E aqui uma indelével lembrança: nos dias incertos da Segunda Guerra, havia ameaça de invasão da Alemanha nazista que chegariam inicialmente em submarinos. Soldados foram velar nosso litoral, oferecer resistência, alertar.

Tempos depois, nos anos 90, a jurisprudência dividiu-se quanto ao mérito desses soldados: estiveram ou não estiveram no teatro da Guerra? A resposta iria decidir se eles eram ou não eram destinatários de um benefício. Para decidir concretamente, na função de juiz federal, indaguei a opinião daquele nonagenário senhor. Vovô Temóteo respondeu-me de pronto, categórico: claro que merecem. Foram dias de ansiedade.

Visto de hoje sabemos o que aconteceu. Mas naquele momento não se sabia. Arriscaram suas vidas. Merecem. Daí soube que ele acompanhara, apreensivo, as batalhas da guerra. Que participou ativamente da comemoração da Vitória, armando palanques pelo sertão e discursando. “Os alemães iam acabar conosco, íamos ser escravos”.

“Eu sou eu e minha circunstância”, lapidar lição daquele espanhol. Ok. Entretanto, onde está a fronteira dessa circunstância? Até onde podemos ir?

“Deus me conceda força para mudar o que posso mudar; resignação para o que não posso mudar; e sabedoria para discernir entre uma e outra situação”, transmite um ensinamento oriental.

Vovô Temóteo e seu charuto. Imprimiu uma forma. Forma que me vem hoje. Viveu bem seus 93 anos. Andou e esteve lúcido até o dia de partir. Partiu tranquilo, a morte lhe era natural. Vovó Eli viveu 99 anos, também andando e lúcida até o último dia. Universais. “Eu sou o que sou”. Salve o Sertão!

Augustino Chaves é escritor e juíz federal.

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