Morreu sim, mas faz tempo. Por Ricardo Alcântara

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Vladimir Safatle lançou “O alfabeto das colisões”, onde defende a ideia de que, no Brasil, “a esquerda morreu”. Ele quer dizer: a esquerda que lutava sob bandeiras ruptivas (igualdade e poder popular).

A bem da verdade, o atestado de óbito do filósofo chega com pelo menos vinte anos de atraso: essa esquerda a que ele se refere morreu no início do atual milênio e seu coveiro foi, com o acesso aos instrumentos de poder, o presidente Lula e sua opção preferencial pelo diálogo.

Como esquerdista cult que é, o celebrado pensador traz seu diagnóstico desacompanhado de um correspondente roteiro terapêutico. Contudo, seria desonesto cobrá-lo por isso. Afinal, ele se deu somente a constatar mesmo e anunciar o que já se sabia desde quando a nomenklatura palaciana botou a turma do Psol pra correr.

Logo, concordo, por evidente. O problema da tese do filósofo está na segunda parte: decorrente dessa regressão da esquerda a um modo de atuação que ele alcunha vagamente como “progressismo” – e que pode ser melhor definido como a Social Democracia que este país suporta – ele conclui que a extrema direita seria agora a bola da vez. Cedo demais para botar esse baralho.

Não embarco nessa vibe Baby Consuelo de Safatle – sim, um desencanto catastrofista permeia suas previsões – embora concorde (e como não?) que a esquerda sofreu uma mutação genética curiosa ao abandonar suas inspirações bolcheviques e assumir a empreitada gerencial de “humanizar” o capitalismo selvagem (termo que o discurso da esquerda também já tirou de seu dicionário).

E não concordo com a previsão de que o futuro do Brasil esteja à mercê da direita conservadora e arcaica porque enquanto houver pobreza e concentração de renda nos níveis atuais haverá espaço eleitoral, e consequentemente de poder, para os porta-vozes das dores de quem vive de mão estendida e tem como refrão um permanente pedido de socorro.

Portanto, a direita que faz o filósofo ter pesadelos é de DNA escravocrata e não tem nervos para agir sobre inspiração generosa. É a turma do “mato, logo existo”. Ela não tem projeto algum para reverter as perversões sociais mais severas. Ao contrário. Para essa gente, o problema não é a pobreza: é o pobre! É uma direita que descrê de si mesma: não se julga capaz de obter lucros sem ampliar a latitude dos cemitérios. Nela, o Liberalismo é apenas um verniz retórico. Não é, por exemplo, uma direita chilena – apenas para não pinçar exemplos mais distantes.

Repare. Não há um só país onde, havendo democracia e pobreza, não haja também uma esquerda com musculatura para ocupar espaços e receber oportunidades de gestão. Enquanto se der a quem tem fome o direito de votar, o discurso de combate à pobreza será ouvido e seus porta-vozes serão chamados a prestar serviço quando a barra pesar. A fome não cala, senão sob coerção policial – e quanto a isso a gangue de Bolsonaro não tinha nenhuma ilusão.

Na América latina, as tentativas de construir um poder de esquerda para além do progressismo levaram a experiências com doses diferentes de populismo e autoritarismo (Venezuela, Bolívia, Nicarágua). O que Safatle chama de progressismo – a esquerda que não fecha tribunais, nem burla eleições – é a esquerda de Pepe Mujica e Lula da Silva. Olhem para a economia desses países e façam suas escolhas.

Safatle tem o direito de sonhar seu sonho impossível de dissidente do Psol. Mas não pode deixar de constatar também que a esquerda brasileira que parece merecer seus bons créditos é a esquerda que o povo não quis. Nem agora, nem antes. Nunca teve voto. E a esquerda que lhe fez torcer o nariz foi, enfim, a esquerda que o povo, em seu realismo antiacadêmico e suas urgências cotidianas, quis votar. Simples assim.

Ricardo Alcântara é escritor, publicitário, profissional do marketing político e articulista do Focus.

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