
Por Augusto Lessa
Colunista do Focus
No final dos anos 80 do século passado Serginho Groisman conduzia o programa TV Mix, na Gazeta de São Paulo. (É importante frisar esse “século passado” para que a geração Z se sinta diretamente responsável pelo início do processo civilizatório.)
Mas, como eu dizia, Serginho fazia seu programa dentro do próprio estúdio de jornalismo da TV Gazeta. Leon Cakoff estava sempre por lá dando dicas de filmes, propagando os festivais que criava, apoiava, e aos quais compareceria. Numa quinta, ele levou cinco ingressos para sorteio da estreia do filme Saló, de Pasolini. Como eu estava peruando por lá em altos papos com a Paula Dip, ganhei um ingresso.
A badalação em torno dessa estreia era grande. Saló, depois da ditadura militar, seria exibido no Brasil. Uma ditadura de fardados que teme a exibição de um filme não merece nem crítica negativa! Foram mais de quinze anos de espera. Saló, finalmente, teve sua estreia marcada para o Gazetinha, cinema que ficava no térreo do prédio da Fundação Cásper Líbero, na Paulista 900.
Fui ao cinema, primeira sessão brasileira de Saló. Entrei mudo, saí moído. De lá, fui direto para a Prainha, na Joaquim Eugênio, eu e o amigo Jack Daniels. Entornei quase a garrafa inteira de uísque, com as imagens queimando meus olhos e fritando qualquer possibilidade de esperança. Havia uma dúvida tremenda.
Eu havia assistido a um filme, ou Pasolini conseguira transpor para o fundo branco todo o inferno de Sade? Aquilo era cinema ou literatura em celulóide? Maior espanto. Eu via o filme e lia o filme – eu via Sade e lia Sade. Quinze anos depois (o filme é de 1975), aqueles instantes da saída do cinema pareciam que eu deixava Auschwitz para trás, entendendo que passaria o resto da vida pagando com muitas sequelas.
Tenho sequelas de Saló, da morte de Pasolini; vivo sequelado por ter nascido num ambiente social escroto como metades dos séculos XX e XXI. Há pouco, chamei aquilo de inferno de Sade. Pasolini teve essa intenção. Erudito, usou a marcação literária de A Divina Comédia de Dante para criar a sua obra, concentrando-se principalmente no Inferno.
Saló era o último filme de Pier Paolo Pasolini. Jean Duflot, jornalista, crítico literário e cinematográfico, intelectual francês, em sua entrevista final com Pier Paolo se despedia do artista dizendo que deixava em casa um escritor emocionalmente desfigurado, um artista em farrapos, alguém que lhe dizia: “Duflot, peça a todos que nunca esqueçam meus poemas friulanos, que façam justiça a minha poesia dialetal…”
Um mês depois, o escritor – que se tornara ocasionalmente cineasta, após os quarenta anos – seria assassinado em Ostia. Seria monstruosamemente assassinado em Óstia. Saló seria seu grito de agonia, seu livro-filme que nunca perecerá.
A direita canalha e a esquerda incompetente conseguiam calar um poeta que, mais do que ninguém, brigara pelo subproletariado criando uma obra consistente e – muitas vezes – impenetrável. Detesto os que falam que fulano ou sicrano “são atuais”. Agora, tenho de engolir o meu detestar. Pasolini está aqui, Pasolini ainda grita alto a sua angústia por ver um mundo consumista sobrepor-se a todos os valores mais caros de uma sociedade democrática – nome de fantasia para um sistema que não tem funcionamento em parte alguma.

Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, mas amava a Casarsa de sua mãe, dona Suzana Pasolini, seu único, grande, verdadeiro, obsessivo amor, com quem morou até o dia da sua morte, em 2 de novembro de 1975. Filiou-se ao partido comunista (com minúsculas) do qual foi expulso por delação de um padre, após a sua confissão.
Pasolini dissera em confessionário ter mantido relações com um ragazzino. O padre, traindo um dos maiores pilares dogmáticos do catolicismo, o sigilo confessional, entrega Pier Paolo à polícia. O PC italiano o expulsa. Ele e dona Suzana vão embora para Roma, onde vivem numa periferia miserável.
Pasolini vai se destacando como professor e intelectual. Aos poucos, recebe o respeito da maioria intelectual europeia. Alberto Moravia, Jean-Paul Sartre, Fellini, Rossellini, Elza Morante, Bernardo Bertolucci, Dacia Maraini, Giorgio Caproni, Jean-Luc Godard, são da sua intimidade. Mas o poeta jamais trairá o povão da periferia, que tanto amava, por quem vivia e escrevia, a quem amaria com uma paixão quase carnal (muitas vezes carnal, quase sempre carnal).
Por tudo isso, Pier Paolo Pasolini, escritor admirador de Gramsci, a quem nunca renunciaria, mas sobre quem exerceria uma crítica feroz, como fizera sempre ao PC italiano, levaria sua literatura às telas e, dessa forma, se tornaria famoso e encontraria a fonte do dinheiro que até então recusara.
Houve um instante em que ele não entendia mais a diferença entre a linguagem do cinema e a linguagem escrita. Semiólogo, era confuso para ele estabelecer a diferença entre a verbalidade de As cinzas de Gramsci e Gaviões e Passarinhos, Teorema livro e Teorema filme, Poesia em Casarsa e Evangelho Segundo São Matheus, Amado Mio-Atos Impuros e a Triologia da Vida.
Atacado pela permissividade dos progressistas burros (esquerda/direita), Pasolini é condenado à morte por uma maioria que envolve direita e esquerda. Quando a gente é incômodo demais, não há ombro que nos suporte. Não havia ombro para Pasolini. Amante dos Ragazzi di Vita, ele se deixa assassinar por Pelosi, como questiona Dominique Fernandez numa biografia ficcional chamada Pela mão do anjo, premio Goncourt em 1982.
Pasolini teria se deixado assassinar pelos próprios anjos que tanto amou? Pasolini foi assassinado pela direita canalha? Pasolini foi assassinado por uma esquerda incomodada? Pasolini foi assassinado por facções ligadas às drogas? Pasolini foi assassinado. Nunca, em toda a Itália, um crime tão óbvio foi tão misteriosamente ocultado. Artistas do mundo inteiro ainda hoje pedem a reabertura do caso. Mas a Itália, como o Brasil, é um ninho de ratos que odeia o intelectual competente e o artista sério. São gaiatos. E não há nada mais repulsivo do que gente gaiata.
Pier Paolo Pasolini não vai morrer tão facilmente porque os smartphones com as redes sociais estão vivos e são o último atentado contra a decência humana. Decência que, dentro da “indecência”, Pier Paolo Pasolini combateu e morreu por ela.
P.S. No Brasil, o filme está disponível na Darkflix, plataforma brasileira de streaming voltada ao público de terror
