“Para alguns internautas, a democracia encontra-se em risco. Para outros, a democracia é um risco”
Por Paulo Elpídio de Menezes Neto
“Todo fundamentalismo se baseia em afirmações falsas”
Umberto Eco
Só às criaturas dotadas de gênio foi dado cultivar o mau humor. Aos medíocres, como todos nós, à falta do talento que o esforço não compensa, essa licença foi negada. Não porque Deus não se ocupe desses pormenores que atormentam a vida das criaturas por Ele postas em vida. São as criaturas, a enorme descendência deixada por Adão e Eva sobre a terra, que se bastam com as suas próprias implicâncias e a sua amargura – e refugam as dos outros.
O humor – os mais indulgentes, os que leem aplicadamente estas linhas, hão de condescender com o meu passo audacioso pelo terreno cediço do gerenciamento da fé – não é dádiva de Deus, tampouco o desvio dos pecadores pelos seus pecados reconhecidos ou registrados. Estaria no vasto capítulo que versa sobre o livre arbítrio, segundo a bula que autoriza o seu adequado emprego. Aquele alvedrio autorizado ou, simplesmente, ignorado por quem aprova, concede, ou desautoriza.
Mais complexa é a operação que faz do bom humor o contraponto do mau humor, espanta a tristeza, o dissabor e a amargura e põe no seu lugar a consolação, o agrado e o júbilo, manobra sutil da qual extrai a ironia, traço marcante do discurso das criaturas inteligentes. A dadas pessoas, pela exceção das suas qualidades, é concedida a imunidade da fala, com direito reconhecido para exercitar o humor ao bel prazer de suas íntimas injunções.
Umberto Eco foi uma dessas figuras de exceção, pela inteligência e a erudição, um ator renascentista com muitos e incontornáveis recursos, como historiador e escritor. Sem falar nas suas aventuras semióticas pelos domínios dos símbolos e das palavras. Tornou-se conhecido, nos últimos anos da sua vida, como um “grincheux magnifique”, um magnífico mal humorado. Praticava o mau humor com método, como os assíduos frequentadores das academias de ginástica se dedicam aos exercício de musculatura… Tudo se tornara insuportável para ele – e não lhe faltava razão para tanto, admitamos.
Queixava-se da Itália, país de nascimento no qual viveu a maior parte do tempo, e ironizava a Europa unida, tanto quanto a desunida, o sistema educativo, a crise financeira, o ecologismo militante, o “politicamente correto” de inspiração hipócrita, conforme o sinal dos tempos, o feminismo e a imprensa — vá lá, a mídia, designação na qual tudo se conforma e confunde. Satirizava as incertezas da vida política e o intelectualismo pretensioso da intelligentsia, e os intelocratas (promoters ou influencers), aqueles que operam o marketing da verdade e do talento; chamemo-nos de publicitários da inteligência.
Tento fixar, sob a inspiração de Eco, com risível pretensão, os traços afoitos de um pintor impressionista, os contornos dessa tribo, dos que ajudam a servir o que convencionaram referir pelo tratamento metafórico de cultura. E o fazem em doses homeopáticas, confundindo, por descuido ou simples cálculo, os rótulos das mezinhas ministradas.
Poucos se surpreenderam quando Eco denunciou a imbecilidade triunfante que fizera morada nas redes sociais. Muito poucos, entretanto, acreditaram nas suas graves antevisões sobre o futuro da universidade (as universidades “podem ainda ter um papel no mundo globalizado de hoje?”). O que temer mais, indagava ele, em relação ao futuro da universidade? Excesso de filtragem no processo de recuperação de dados perdidos ou represamento dos dados disponíveis pelos seus instrumentos de armazenamento cultural? Ou o apresamento do pensamento e das ideias, segundo o molde de fórmulas consagradas por alguns paradigmas ideológicos?
Essas liberdades assumidas e uma vocação indomável para fugir às regras e aos padrões ideológicos dos utopistas sindicalizados valeram a Eco punição exemplar ao fim da sua vida: o selo de liberal reacionário, estampado pelos consensos das greis teocrático-ideológicas do universo acadêmico.
Mais poderia ser acrescentado, a título de ressalva das virtudes que ele cuidava por dissimular, escondidas pela sua bonomia, pelo tom divertido e espiritual de suas boutades mais impiedosas.