Por Paulo Elpídio de Menezes Neto
Articulista do Focus
“Os eventos essenciais do nosso tempo preocupam do mesmo modo os que acreditam na ruína final e os que se entregam ao otimismo temerário”[Hanna Arendt – “Origens do Totalitarismo”, Cia. das Letras, Rio de Janeiro,2023, o. 12].
Nesta encruzilhada de equívocos intencionais na qual nos encontramos, o maior desafio apresentado aos políticos e aos governantes está no “escrever” as leis. Melhor dizendo, o registro dos regramentos das ações do governo dos Estados representa a redução de ideias e controvérsias, extraídas de uma alongada experiência coletiva. Não é assim que ocorre nas democracias, nas sociedades abertas?
Ideias, críticas, convergências e divergências, de tão maduras na percepção sugerida pela sociedade, convertem-se nos instrumentos legais que as tornam visíveis e operacionais como mecanismos e objetivos do governo do Estado.
Das leis, quer-se que sejam motivadoras de novos propósitos e regeneradoras de desvios dissimulados na convergência de interesses compartilhados, como se o povo lhes houvesse dado a sua aprovação.
Não se tratam, é bem de ver, de leis de ocasião, de mecanismos facilitadores de acomodações constitucionais, de um “new constitutionalism” woke. Tratam-se, antes, de leis visitadoras do passado, com vocação para uma revisão ampla das estruturas institucionais da nação.
Por pressuposto, leis não se constroem apenas com ferramentas constitucionais formais, alimentadas pelas intenções coercitivas de injunções jurídicas e do aparato judicial de uma estrutura legal inelastica e persistente.
A arquitetura constitucional de uma nação completa-se por um processo de legitimação decorrente da adesão voluntária da sociedade e não da obediência induzida pelo medo ou pelas injunções.
As leis espelham o ordenamento de regras, de obrigações impositivas, mas, também, ressumam a cultura política de um povo, a consciência profunda das suas origens, das suas tradições, dos ideais de liberdade e de um compromisso inarredável com o futuro do país.
A divisão política de um país, efeito de antagonismos aparentemente inconciliáveis, origina-se de contraposições ideológicas de frágil poder lógico em termos de racionalidade, no plano da ação política.
A radicalização ocupa, nestes espaços de contraposições partidárias e ideológicas teimosas, posições intransigentes supostamente irredutíveis.
Esquerda e direita abrigam, entretanto, saídas de fuga e alternância cuja importância vem se formando com bastante visibilidade, já de tempos recentes. Não chegam a caracterizar, por serem movimentos em formação, uma “terceira via”, como alguns imaginam, espécie de “social-democracia”, embora acanhada, sombra e projeção do fundamentalismo que domina as principais lideranças das militâncias totalitárias.
Destas esguias aberturas hão de surgir, segundo a percepção de alguns cientistas políticos, indícios de uma profunda revisão da “democracia” e dos conceitos que fazem deste projeto político a animadora promessa de contenção das manifestações autoritárias que dominam a sociedade brasileira.
Assim como não podemos fixar pontualmente o nascimento da democracia — teria nascido 25 séculos atrás, em Atenas —- não parece crível que estejamos assistindo ao declínio final da democracia, tal qual a praticamos.
Pressupunha Robert Dahl que “a democracia possa ser inventada e reinventada de maneira autônoma sempre que existirem as condições adequadas”. [On democracy, Yale University Press, 1998, p. 19/22].
A democracia é um sistema de organização política em constante e permanente construção. Erguida a partir dos princípios da liberdade, dasoberania do povo, da equidade, da igualdade e do respeito pelos direitos humanos, a democracia sofreu trágicos revezes ao longo da história. Na adversidade e na luta contra os seus inimigos, os ideais de liberdade recobram a força e a energia que fundamentam e preservam os ideais democráticos essenciais.