A era da relativização: quando o mal banal encontra o enxame digital; Por Aline Lima

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Em Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, Hannah Arendt nos alertou sobre os perigos da ausência de reflexão. Adolf Eichmann, burocrata nazista, não era um monstro excepcional, mas um homem ordinário, incapaz de pensar criticamente sobre suas ações. Ele obedecia cegamente às ordens, com a mesma frieza com que se arquivam papéis. Arendt revelou como o mal pode ser banal quando a crítica é substituída pela conformidade. Hoje, em um mundo hiperconectado, essa ideia ganha uma nova dimensão. Vivemos uma era em que os fatos se diluem em interpretações apaixonadas, e a reflexão é ofuscada pelo frenesi do enxame digital.

Byung-Chul Han, em suas obras sobre a sociedade digital, apresenta conceitos que ajudam a entender esse fenômeno. Na infocracia, a informação é o novo instrumento de poder. Somos inundados por dados, mas em vez de clareza, enfrentamos confusão. No lugar de cidadania crítica, temos consumidores de narrativas que escolhem versões dos fatos de acordo com seus afetos. A relativização da verdade não se limita às fake news; ela se alimenta de nossa inclinação a reagir de forma automática, guiados por ídolos ou desafetos.

Essa lógica é amplificada pelo que Han chama de enxame digital: multidões dispersas que operam sem direção clara, mas reagem instantaneamente a estímulos emocionais. Redes sociais são o palco onde indignação, paixão e tribalismo superam qualquer análise racional. As pessoas não buscam entender os fatos, mas confirmar o que já acreditam. Nesse ambiente, o “mal banal” de Arendt se reinventa: a passividade reflexiva dá lugar à superficialidade engajada, onde reagir é mais importante do que pensar.

O problema não está apenas no excesso de informações, mas na forma como as consumimos. A velocidade do digital nos empurra para julgamentos instantâneos, enquanto a profundidade dá lugar à polarização. Defensores e críticos de figuras públicas ou ideias disputam espaço sem considerar os fatos em si. O que importa não é a realidade, mas a adesão à narrativa que conforta.

O antídoto para esse cenário, como apontam tanto Arendt quanto Han, está na recuperação da reflexão crítica. Precisamos reaprender a duvidar, a pausar e a pensar antes de reagir. A desaceleração informacional é fundamental para escapar do ciclo de reações impulsivas. Mais do que nunca, precisamos resgatar a responsabilidade coletiva sobre como consumimos e compartilhamos informações.

Se, no passado, o mal floresceu na obediência cega, hoje ele prospera na banalidade da superficialidade. Superar essa inclinação exige coragem para confrontar nossas próprias crenças e disposição para reconstruir um espaço público onde a verdade não seja uma questão de opinião, mas um compromisso ético com a realidade.

Aline Lima é psicóloga, pós-graduada em Psicopedagogia e Psicopatologia, com formação em coaching executivo. Especialista em Gestão de Negócios e Programa CEO e Programa COO pela FGV. É CEO (Libercard), liderando desenvolvimento de produtos, equipes e relações institucionais.

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