Miranda, a saga de um “croupier” e as melhores cartas do baralho; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

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Miranda, provavelmente Antônio, quem sabe, Joaquim, português de Trás–os-Montes. Da sua passagem por Belém do Pará, trouxe a sua Marieta. Pelas razões que desconheço, costeou o litoral, vindo do norte para instalar-se, por último em Fortaleza. Eram outros tempos, tempos de guerra, de graves interrogações.

A rua dos Pacajus fizera-se de um curto desvio na praia de Iracema, contida pelas ruas Ararius e Guarino Alves (antiga rua dos Caetés, tomada pela febre de designação de personalidade locais). Um quarteirão que começa na esquina de um velho casarão térreo habitado pela mrs. Sanders, uma inglesa que dera com os reais costados de súdita britânica por aqui, convencida de que deveria levar os autóctones e expressarem-se correntemente no idioma de Shakespeare. De altura acima das regras anatômicas dos filhos da terra. Suponho que se  tenha empenhado em edificante obra missionária e vencido algumas resistências próprias aos habitantes dos trópicos, gente como nós, e tenha-se convencido da importância do seu apostolado nas terras nas quais passou a viver.

Debruçadas sobre a rua dos Pacajus, forrada de calçamento irregular e pedras toscas, mostravam-se as fachadas de antigos sobrados, parte da edificação superior dos prédios de dois pavimentos, “sobras” do que sobrara do resto de um conjunto maior. Das platibandas altas ou do telhado de uma água, abriam-se as bocas escancaradas dos “jacarés”, bicas por onde jorravam em dias de chuva o empuxo d´água sobre as calçadas. Do casario voltado para o mar, mostravam-se os quintais e áreas de serviço e o vai-e-vem das serventias das casas, cozinha e áreas abertas para as calçadas.

Dentre as moradias e terrenos por ocupar, despontavam, por aqueles tempos, voltados para a praia, o Hotel Iracema e o Ramón, lugares que emprestavam àquela rua a graça e a atração de noites movimentadas por frequentadores habituais.

No número 71, vieram instalar-se os Miranda, Marieta, Antônio e Yeda, ninfeta em flor, filha por adoção do casal. Marieta de muitas e raras habilidades na cozinha portuguesa, Yeda, adolescente aluna de um colégio de religiosas, bem a propósito denominado de Colégio da Imaculada (Conceição de Maria, assim batizado).

Antônio, português robusto, com o falar tomado pelo sotaque da sua aldeia, era um personagem da noite, “croupier”, por profissão e ofício. Por origem, “crupe” em francês,  garupa de cavalo, aquele que cavalgava na garupa de uma montaria. Pelos maltratos da semântica terminaria por significar alguém que era empregado para coletar dinheiro… “Croupier” da preferência dos habitués, Miranda, tinha sobre a sua toalha os jogos mais audaciosos e os jogadores bem munidos de fichas e esperança.

O Ideal Clube nos seus tempos mais distantes funcionava na rua dos Tabajaras, em um de três bangalôs que subsistem, ainda, à fúria da modernidade cearense. A noite caída, os primeiros parceiros chegados, a roda de velhos comparsas e amigos, movimentava-se sob a maestria de Miranda, em jogos de pocker, blackjack, bridge e canastra. Algumas senhoras não se intimidavam e davam literalmente as cartas e mostravam do que seriam capazes em uma mesa de jogo…

Seguia com os olhos, a atenção e a curiosidade de criança, a saída do “seu” Miranda, ao som melodioso do “Angelus”, em final de tarde, com o anoitecer anunciado. Descia à calçada, dentro de um impecável terno de linho branco 120, charuto espargindo o odor e as manchas de fumaça desenhadas no ar, e caminhava os dois quarteirões que o levariam ao “cassino” do Ideal.

Descobriria os segredos do lugar, anos depois, já crescido em instinto e desejos, de passagem, que até hoje, mal grado os esforços de amigos solidários, nunca consegui  fixar as cartas do baralho e distinguir a diferença que elas guardam entre si.

Para o almoço, já recuperado de uma noite exaustiva, vinham as nossas conversas. Acostumei-me às sobremesas de dona Marieta e tornei-me comensal habitual. Pôs-me nas mãos livros os quais os tenho ainda  guardados entre as leituras mais remotas, como aquelas que vinham dos aconselhamentos de meu avô.

Certo dia, numa daquelas manhãs envoltas de saudades entrevistas, fui dar os meus adeuses àquele doce gente amiga. Entre os móveis e as caixas de mudança que se espalhavam pela área de serviço, lá estava uma um pequena cristaleira, na qual eram guardados alguns bens de raiz de porcelana e cristal, vazia, dona Marieta a dar-lhe brilho e polimento

“Esta vai ser a sua estante, trate de enchê-la com vagar, só ocupe com livros que você os tenha lidos”, acenada seguro de si e da partida anunciada, “seu” Miranda.

Tive o movelzinho gracioso, em varias e sucessivas mudanças, até que, esquecido da recomendação do “seu”  Miranda, esgotei os espaços das suas prateleiras com livros lidos e por ler, segundo a regra de Umberto Eco, a que me apeguei como justificativa dos meus pecados de bibliômano assumido.

À minha biblioteca, na qual continuo a fazer magníficas descobertas de novas leituras, associei duas pessoas sempre presentes, o avô, leitor de Voltaire, ainda Maranguape, quando ganhava a vida com as artes da tesoura em uma barbearia; e Miranda, “croupier” que sempre tinha em mãos as melhores cartas do baralho…

 

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