No improviso do palco. Por Angela Barros Leal

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Ele senta na cadeira alta, estofada, coberta por um material plastificado na cor marrom. Cruza as pernas, firma-se nos braços laterais, e de lá emite sua voz, treinada para ser ouvida pela velhinha surda que, eventualmente, estivesse sentada na derradeira fila de algum imenso auditório imaginário.

Não é questão de volume, explica, quando comento sobre sua potência vocal. É questão de pro-JE-ÇÃO DA VOOOZ! –, detalha em fala e em gestos, erguendo junto à garganta a mão esquerda, qual fosse eu uma de suas alunas.

Fui professor de teatro na Universidade, por mais de 40 anos, e ainda dou aulas por lá –, escuto a voz tonitruante proferir, do alto da cadeira. Fui também professor de História – complementa –, além de ser palestrante, ator, diretor, jornalista…

Ele parece um tanto ofendido por eu desconhecer tais componentes de sua viajada e experiente biografia, passada sob os ares de Europa, França e Bahia.

Escrevo, escrevo, escrevo todos os dias – prossegue, com a mesma voz poderosa. Escrevo poemas, contos, crônicas, peças teatrais – e faz uma pausa dramática, baixando o tom: Só não escrevo romance, mas estou sendo cobrado para fazer isso.

Tivesse eu o dom do desenho – penso com meus ausentes botões –, riscaria sobre o papel, ou sobre a tela, como imagino que deva ser o escritório de trabalho dele: papeis por todos os lados, ideias soltas anotadas em guardanapos, folhas impressas transbordando das gavetas, livros abertos sobre a mesa ou mesmo empilhados no chão (como fazia Capistrano de Abreu no Rio de Janeiro, abrigado pelos livros erguidos em colunas, ao lado da sua rede cearense).

Imagino maços de papel trazendo impressos seus textos, enfiados de qualquer jeito nos bolsos do paletó cinza que ele veste, e que diz ter alugado para me receber no programa de TV que apresenta.

Não sei se alugou de verdade. O riso dele me faz duvidar. É um escritor e um ator, criaturas que vivem da imaginação. Vindo deles, tudo é possível.

Do seu posto imponente, meu anfitrião submete-se aos cuidados do produtor do programa que, pelo que percebo, desempenha o papel de faz-tudo no camarim e no estúdio. Tanto que agora se ocupa em aplicar gel fixador nos fios laterais do cabelo dele, em passar a base no seu rosto, em voejar leve camada de pó, em contornar com lápis escuro os seus olhos, voltados para o alto como se esperasse revelações.

A entrevista vai ser coisa simples – me assegura distraído, quando chega minha vez de receber os toques prévios de base, pó, blush e batom. Vai ser simples, repete ele, minimizando com as mãos a gravação que nos aguarda. Nada mais que um papo ligeiro, num minuto termina.

Estou ciente de que não é bem assim. Conheço o programa. No girar dos ponteiros, ou na sequência numérica dos relógios digitais, o tempo total chegará aos 60 minutos. Talvez um pouco menos, já que ele costuma pedir intervalo para os comerciais da emissora.

Confesso a ele que prefiro estar do outro lado, o lado de quem faz as perguntas, o lado onde minha formação habitualmente me coloca. Mas enfim. Cá estou, pronta para enfrentar o destino de ‘dialogada’ frente ao ‘dialogador’, neologismos criados por ele.

Não recordo mais os tantos temas que abordamos, no silêncio iluminado do estúdio, sentados em pontos opostos de uma mesa de vidro. Dialogamos sobre assuntos variados, mergulhando na descontração dos recém-amigos. Descobrimos tantas afinidades, ao longo da hora de conversa, que não retruquei ao ser qualificada por ele como Historiadora (algo que muito me honraria, mas que não sou), nem ao ser apresentada como Autora de Ficção (o que igualmente não sou).

Ao final da gravação, bem antes da veiculação e do armazenamento na nuvem fofa que guarda memórias para a posteridade, combinamos aceitar, humildemente, os inevitáveis deslizes e omissões acontecidos. Deram-se no improviso do palco, como ele está cansado de saber.

É igualzinho na vida, ele diz com o vozeirão de sempre, sem ensaio nem edição. E retira com cuidado o paletó, já em busca de outro nome com quem possa gravar novo diálogo.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder 

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