[Uma historinha mal-contada]
“Ô rapaz por que não fica com esta Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus onde estão as eternas verdades. E se ficar com ela, vai mais este volume de quebra sobre as feras que devoram os homens, as feras morais”, João do Rio – “Os mercadores de livros e a leitura das ruas”
Já se explorou muito as fontes da história para descobrir como e porquê surgiu o alfabeto. As versões mais variadas e infundadas multiplicam-se pela voz e pela escrita dos cronistas.
Suspeitam alguns pesquisadores que teriam sido os persas que criaram os códigos mais rudimentares, ainda assim eficientes o bastante, para que lhes fosse dada alguma utilidade. E o fizeram movidos pelas necessidades contábeis dos seus negócios. A escrita, segundo esses investigadores, foi uma forma de controlar as atividades de compra-e-venda de semoventes e de outros bens de consumo.
Parece razoável, pois o homem (por aqueles tempos, mulher não contava, nem os juristas haviam criado o feminicídio) sempre agiu motivado por interesses e necessidades. Ninguém havia lido, até então, Saramago, nem Cervantes, ademais de Shakespeare e Homero, daí não ter surgido a tempo o “homo literatus” que enche as prateleiras do mundo civilizado.
Há, entretanto, quem trabalhe com a suspeita, a que me associo, “bon gré, mal gré”, a respeito do nascimento da escrita literária, que os filólogos chamam, hoje, de “textos”. Pretextos, melhor diríamos, contextos criados pela ficção.
Um certo mercador empregara para o transporte das suas mercadorias postas à venda um cuidador de camelos [haris aljamal]. Descobriria, muito cedo, entretanto, quão poucas eram as suas habilidades para este tipo de atividades.
Surpreendeu, em viagem pelos caminhos de Samarcanda, “cruzamento das culturas”, o “haris” em hora de labuta a escrever palavras, e a dar forma e significado a alguns tropeços que encantaria, nos milênios seguintes, aos mais rigorosos especialistas em teoria literária…
Nascia a literatura, nos seus primeiros vagidos, para uma vida acidentada, de Virgílio e Homero a Paulo Coelho, da poética de Goethe à literatura “queer”… Da inspiração prodigiosa de poetas e
aedos aos mercadores de palavras, os lembrados e esquecidos de um
bela caminhada de beleza e talento.
Da contabilidade de bens à ficção, do real ao imaginário, tornamos-nos criadores das nossas origens culturais mais remotas. Não sem passar, entretanto, pela Biblia e por outras leituras edificantes, pelos manuais úteis para a edificação da alma, e para a correição da maldade.
Os alfabetos latino, grego, cirículo e as formas variadas de aletramento, códigos e a captação dos fonemas vêm dos fenícios e das suas carências contábeis. Foram sequestrados pelas razões da palavra de Deus e pelas injunções jurídicas dos homens.
A literatura, a prosa e a poesia salvaram a linguagem escrita pelas mãos dos artesãos da estética e das narrativas da memória.