O paradoxo da eficiência e a ilusão do estado-máquina. Por Raimundo Nogueira da Costa Filho

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O novo governo
dos Estados
Unidos criou um departamento chamado DOGE (Departamento de Eficiência Governamental), com a missão de eliminar desperdícios, reduzir a burocracia e tornar o Estado americano mais ágil. Elon Musk foi nomeado para liderar essa iniciativa, trazendo sua mentalidade corporativa para a administração pública, com reduções drásticas, automatização e centralização do poder. O curioso, para não dizer irônico, é que o nome DOGE também remete ao meme Doge, um fenômeno da internet que surgiu em 2010 e se popularizou por sua combinação de humor absurdo e fofura.

O meme consiste na imagem de um cachorro da raça Shiba Inu com uma expressão divertida, acompanhada de frases em inglês quebrado, como “Wow. Such efficiency. Very government.” A escolha do nome, que também faz referência à criptomoeda Dogecoin (inspirada no meme), levanta uma questão essencial: essa iniciativa seria um esforço legítimo para modernizar o governo ou apenas mais uma tentativa de aplicar, de forma apressada e pouco reflexiva, a lógica disruptiva à complexa realidade da administração pública?

A otimização e a redução de desperdícios são objetivos importantes, mas não podem ser os únicos pilares da administração pública. Buscar a eficiência máxima pode levar ao chamado paradoxo da eficiência, um conceito originado na engenharia—especificamente no estudo de máquinas térmicas—e aplicável a diversos processos sociais.

Tanto nesses sistemas quanto na gestão governamental, a tentativa de maximizar a produtividade esbarra em limites intrínsecos, como os impostos pela segunda lei da termodinâmica, e pode resultar em falhas e perdas imprevistas. Nas máquinas térmicas, por exemplo, a eficácia é limitada por essa lei: parte da energia sempre se perde, e operar no limite pode levar a sobrecargas e colapsos estruturais.

De modo semelhante, um governo que busca eliminar toda burocracia, cortar gastos indiscriminadamente e operar como um sistema totalmente otimizado pode sobrecarregar suas estruturas e pessoas, perdendo a capacidade de responder a crises e comprometendo sua funcionalidade. Assim como nenhuma máquina térmica pode operar sem dissipar calor, nenhum governo pode funcionar sem redundâncias e amortecedores institucionais. O que parece um desperdício pode ser, na verdade, o que mantém o sistema de pé.

Esse equilíbrio entre eficiência e redundância, no entanto, foi ignorado por líderes que buscaram transformar o Estado em uma máquina perfeita—como Javier Milei na Argentina e Elon Musk nos EUA. No país vizinho, a promessa era minimizar o Estado, cortar gastos e eliminar supostos entraves à economia, transformando a Argentina em um mercado de livre concorrência com mínima intervenção governamental.

No entanto, as consequências foram imediatas e severas: colapso de serviços públicos essenciais, inflação persistente, aumento do desemprego e da pobreza. A tentativa de tornar o governo uma máquina eficiente ignorou um ponto fundamental: um Estado precisa de amortecedores para lidar com as complexidades da sociedade e da economia. Musk trilha um caminho semelhante. O fechamento abrupto da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) foi anunciado sob a justificativa de que a agência era um desperdício de dinheiro.

No entanto, a USAID desempenha um papel crucial na coordenação de ajuda humanitária, programas de desenvolvimento global e cooperação internacional, atuando em áreas como saúde, educação e combate à pobreza. Sua eliminação sem um plano de transição gerou insegurança diplomática, já que muitos projetos foram interrompidos abruptamente, deixando países parceiros sem apoio essencial e quebrando acordos internacionais.

Além disso, a falta de clareza sobre o futuro
desses programas criou desconfiança em relação aos compromissos dos EUA, resultando em crises legais e tensões com aliados. O resultado? Protestos já começaram a se espalhar pelo país, deixando claro que a busca cega por eficiência nem sempre condiz com preceitos humanitários.

O que acontece nos EUA e na Argentina reflete a ilusão do Estado-máquina—a ideia de que um governo pode ser gerido como uma empresa ou como um sistema de engenharia, onde tudo pode ser otimizado ao extremo sem consequências. Essa visão ignora que a governança envolve não apenas eficiência operacional, mas também estabilidade, previsibilidade e capacidade de resposta a eventos imprevistos.

Um governo, assim como uma máquina térmica, inevitavelmente dissipa calor; a natureza é assim. A tentativa de eliminar todas as redundâncias pode parecer uma estratégia racional no papel, mas, na prática, pode tornar o sistema mais vulnerável ao colapso. Ao observar esses dois países, lembrei-me do filme Brazil (1985) —sim, esse é realmente o título—de Terry Gilliam, que ilustra bem essa contradição.

No longa, o governo tenta ser absolutamente eficiente e centralizado, mas acaba criando um sistema tão rígido e burocrático que ele próprio se torna disfuncional. O que começa como um esforço para otimizar processos resulta em um labirinto de regras incontroláveis, tornando a sociedade ainda mais caótica. A ironia é que, ao tentar simplificar tudo, o governo acaba se tornando mais complexo e menos eficiente.

O DOGE de Musk e as políticas de Milei são expressões atuais desse do profético filme mencionado acima. A busca por eficiência absoluta pode tornar um sistema mais fraco e instável. Em ambos os casos, os governos tentam operar como máquinas perfeitas, mas ignoram que a política e a economia também devem obedecer à termodinâmica.

No fim, a verdadeira eficiência não está em cortar indiscriminadamente, mas em encontrar um equilíbrio entre otimização e funcionalidade. Ao continuarem com essa política, esses países acabarão provando que, ao tentar criar um governo sem desperdícios, podem estar construindo um governo incapaz de funcionar.

Que o Brasil não se transforme no Brazil—uma distopia tecnocrática onde a busca cega por eficiência compromete a funcionalidade do Estado e converte a governança em um labirinto sem saída. Em vez de seguir pelo caminho do desmonte e da instabilidade, o país deveria se inspirar em exemplos como os países nórdicos e a Estônia, que conseguiram modernizar seus governos sem comprometer serviços essenciais.

Essas nações demonstram que a eficiência não está na destruição da estrutura estatal, mas na sua adaptação inteligente, utilizando tecnologia e planejamento estratégico para reduzir burocracias desnecessárias sem enfraquecer a capacidade de resposta do governo. A verdadeira modernização não acontece pelo corte indiscriminado de gastos, mas pela construção de um Estado ágil, resiliente e funcional, capaz de equilibrar inovação com segurança institucional e que considere as pessoas. Afinal, a eficiência sem humanidade é apenas uma ilusão.

Raimundo Nogueira é professor titular do Departamento de Física da UFC, foi professor da University of Western Ontario, no Canadá, e professor visitante da Brown University, nos EUA, e da Universidade da Antuérpia, na Bélgica. Trabalha com fundamentos de física quântica e física estatística. Atualmente é presidente da FUNCAP.

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