IA: O risco no compartilhamento de biometria facial com clubes de futebol no Ceará. Por Frederico Cortez

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Por Frederico Cortez

A inteligência artificial surge como uma ferramenta tecnológica fantástica quanto ao seu uso na identificação de torcedores nos estádios de futebol, trazendo assim mais segurança para quem deseja testemunhar in loco o jogo do seu time do coração. Na data de ontem, 15, o estado do Ceará iniciou a implementação da identificação da biometria facial no clássico-rei Fortaleza e Ceará.

Na ocasião, o sistema de inteligência artificial localizou um torcedor que tinha um mandado de prisão preventiva em aberto e assim a polícia militar procedeu à sua prisão.

A IA vem para inovar e com uma velocidade absurda, ao fazer uma completa varredura contando com atuação em conjunto pela Federação Cearense de Futebol, Poder Judiciário Alencarino, Polícia Civil e Ministério Público. De acordo com informações divulgadas no último dia 7 deste mês, pelo próprio governo do Ceará, na página da secretara de esportes (AQUI), “As informações colhidas pelo sistema de reconhecimento facial serão automaticamente enviadas aos clubes para serem usadas no ato de compra do ingresso”.

Publicação da Secretaria de Esportes do Ceará, sobre o compartilhamento da biometria facial dos torcedores com os clubes de futebol. Fonte: Site Secretaria de Esportes do Ceará.

Neste ponto, mais precisamente, me chama atenção quanto ao fato dos dados dos torcedores (leia-se: biometria facial) serem compartilhadas com entidades privadas, sem ter sido divulgado qualquer protocolo quanto ao tratamento desses dados, como exige a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A legislação de proteção de dados brasileira tem com um dos seus pilares axiológicos o princípio de finalidade e adequação, em que se autoriza o compartilhamento de dados desde que para fins de atendimento ao propósito estrito da sua finalidade, vide art. 6º, I da Lei 13.709/18. Soma-se ainda que, o art. 2º da LGPD elege o respeito à privacidade como um dos seus fundamentos.

Mais a mais, não se admite excetuar esta prática do governo cearense em compartilhar os dados biométricos de forma automática com os clubes de futebol pela ausência de previsão legal na LGPD. Vou além ainda e sem um maior esforço intelectual, bastando tão somente consultar a lei protetiva de dados pessoais em seu art. 4º que elenca expressamente os casos em que a LGPD não pode ser aplicada.

Desta forma, alegar que essa “entrega” de dados pessoais pela autoridade pública às entidades privadas é medida de segurança pública, segurança de Estado, ou atividades de investigação e repressão de infrações penais, não encontra ressonância dentro do nosso sistema de legalidade de proteção de dados. A LGPD veda qualquer tipo de manobra reversiva quanto à sua aplicação, uma vez que a identidade facial de um indivíduo não é considerada um dado anonimizado, como assim explica o art. 5º, inciso “III:  dado anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”;

Interessante alertar ainda para essa falha na divulgação da biometria facial dos torcedores pelo governo do Ceará, fere ainda o dispositivo no Projeto de Lei que regulamenta a utilização da inteligência artificial no Brasil.

De certo que o PL 2338/23, ainda se encontra em seu estágio de discussão e aprovação, agora tramitando na Câmara dos Deputados após a sua aprovação pelo Senado Federal em dezembro do ano passado, classifica no art. 14 como de alto risco “o sistema de IA empregado para as seguintes finalidades e contextos de usos, levando-se em conta a probabilidade e a gravidade dos impactos adversos sobre pessoas ou grupos afetados”.

O que defendo aqui não é o banimento do uso da IA na segurança pública, mas que todo o processo esteja sob a vigilância constante do Estado Democrático de Direito, com o respeito inarredável da proteção e garantia dos direitos individuais. Conforme divulgado pela secretaria do esporte cearense em seu site, avalio que deveria vir colacionado o termo do convênio do compartilhamento desses dados biométricos com os clubes para o conhecimento público, ou caso ainda não tenha sido construído que cesse qualquer medida de transferência dessas informações pessoais até a sua regulamentação e nos moldes impostos pela LGPD.

Um dado interessante a se apontar é que, a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial responsável pelo cumprimento da LGPD, abriu investigação em fevereiro deste ano sobre 23 clubes de futebol, incluindo aqui o time do Fortaleza, quanto à falta de transparência e adequação do tratamento de dados pertencentes às crianças e adolescentes.

Com isso, temos já um precedente para inaugurar essa atenção e preocupação com o uso da IA nos estádios de futebol, devendo blindar qualquer tipo de compartilhamento que venha a se efetivar de forma irregular e ilegal.

Ter a IA como uma aliada ao combate à criminalidade é primordial, não podendo se sobrepor ao que defende a nossa Constituição Federal de 1988. Os direitos individuais não podem ser recuados em nome de um suposto bem maior, antes do exercício do contraditório e da ampla defesa.

A segurança pública é essencial para a manutenção do convívio coletivo, devendo sempre priorizar o direito individual para atingir o interesse coletivo de todos nós.

rederico Cortez é advogado, fundador do escritório Frederico Cortez Advocacia. Especialista em direito empresarial, propriedade intelectual e direito digital, escritor de artigos de opinião jurídica, sendo referência bibliográfica em obras jurídicas e trabalhos acadêmicos. Presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OABCE. Diretor jurídico do Focus Poder. Escreve semanalmente.

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