Com Llosa à porta do Alvear, abri-lhe, fascinado, a porta do táxi; Por Paulo Elpídio

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A cena poderia ser a descrita por Paulo Elpídio defronte ao belo e aristocrático hotel Alvear, em Buenos Aires. Trata-se de um flagrante de Mario Vargas Llosa, em 2010, ano de seu Nobel, em Nova Iorque, cidade na qual mantinha um apartamento.

[Dos seus livros, virei muitas páginas, e ainda retorno de vez em quando a algumas passagens das quais não consigo fugir]

José Míndlin, misto de bibliófilo, bibliômano e bibliólogo e leitor voraz lembrava Thomaz Man: “A leitura dos bons livros deveria ser proibida, porque existem os ótimos…”

A partida de Vargas Llosa é um grande ausência declarada e sentida em nossa casa. Senti-me como se fosse uma perda em família.

Ri-me e diverti-me, preocupei-me e muito aprendi com Vargas Llosa. Descobri melhor as cores dessa vasta região nordestina, com a releitura de “Os Sertões”, Euclides da Cunha, na sua grandiosa versão de “A Guerra do Fim do Mundo”. Dele li tudo o que pude. Guardei o colossal panorama social e político por ele traçado desta atormentada e tormentosa América Latina. Briguei em sua defesa contra gente de escapulário ideológico pendurado ao pescoço.

Quase sempre, comprei os seus livros no lançamento, em edição espanhola, trazida pelas livrarias virtuais, pelo prazer de ler a sua prosa em castelhano. E levava dois exemplares, um para consumo próprio e intransferível (só empresto livro sob mandado judicial ou busca policial para estrita salvaguarda da democracia); outro, para presentear amigos ou inimigos negligentes que não tivessem o hábito de ler o extraordinário autor de Conversa na Catedral e A Guerra do fim do mundo.

Quando estivemos, Zuleide e eu, em Buenos Aires, ficamos hospedados por imprudência minha, como haveria de incriminar-me Lustosa da Costa, no Alvear, na Recoleta, onde até “aniversariei” com a doce cumplicidade dos nossos compadres, da fina flor da família dos Silva-Barros. Pois bem. Vinha eu certa manhã da Livraria El Ateneu, em Palermo. “Chargé”, Carregado de livros, haveria de dizer em péssimo francês o arabezinho do hotel de Suez, no Quartier Latin, denunciando-me por pura maldade levantina, pelas minhas “compras inúteis”, segundo lhe parecia, à Zuleide, gestora atenta dos meus agravos financeiros.

Hotel Alvear, em Buenos Aires

À porta, na parada de táxi, lá estava Vargas Llosa. Já nos havíamos entrevisto no café da manhã. Galantemente, de brasileiro do Ceará para peruano de Arequipa, abri-lhe a porta do coche…

Ainda hoje suspeito que Llosa tomaria, animado como estava, mal dissimulando as prelibações de um comprador de livros, o caminho por onde eu tinha chegado. Ia a Palermo, ao El Ateneu… Com toda a certeza.

O mundo tende a despovoar-se de homens e dos mais inteligentes. De homens, dada a avalanche do movimento +LBTGYKONM que esvaziará o planeta desse gênero primitivo e sem utilidade prática, sem falar da indecisão de certos machos irresolutos quanto à sua condição de origem.

De gente inteligente, careceremos igualmente por igual, porque gente burra não morre neste país. Foi a mão pesada e justiceiramente de Deus que nos castigou. Sequer cuidou de saber se esses espécimes comuns eram de esquerda ou de direita. A espécie dessas desvalidas criaturas foi, assim, preservada para sempre. Já os inteligentes continuam a partir cedo, sequer avisam, apressados que andam para apanhar a carona da Revelação e livrarem-se do vazio que se vai abrindo com muita rapidez em um incontrolável processo de idiotização que tomou conta do Brasil.

Até tentei, porém não consegui impedir-me de recordar um trecho de um dos seus livros que retrata muito bem, os que como eu — “bibliopatas” confessos, sem arrependimento, ou seria “bibliômano”, quem sabe, “bibliólogos”? — , lutam contra esse vicio sem cura.

Em “O Caderno de dom Rigoberto”, a história de um cidadão acima de qualquer suspeita, tomado de manias caras a poucos acessíveis, faz o relato (não seria um prontuário médico dos males que se apossaram da vontade de dom Rigoberto?) da sua convivência com os livros.

Com as estantes entupidas, regurgitantes de livros, sem espaço disponível, nem prateleiras, nem gavetas dissimuladas, a compra de um livro novo, encontrado nas suas buscas inconfesssveis, e alguns furtos discretos, apresentava-se já por aquele tempo, uma operação árdua e complexa. “Produzir” espaço novo significava desfazer-se de um volume de tamanho aproximado, nas dimensões correspondentes à nova obra a ser incorporada ao acervo…

De início, dom Rigoberto presenteava os amigos com os livros condenados. Homem sensível, percebeu, entretanto, que o gesto poderia ser considerado culturalmente invasivo, a imposição de preferências suas a amigos incautos em matéria literária. Decidiu-se pela radicalização: incinerar as obras para tomar-lhes o espaço vital.

Com tamanha e terrível ideia, a compra de um livro novo, fosse raro ou uma simples e prosaica edição sem maiores merecimentos, tornou-se uma decisão grave, um ritual de passagem incomum. Rigoberto mergulhava em um profundo “spleen”, esse incontornável mal de intelectuais, de que se servem os ingleses para dar-se aquele ar nostálgico dos ilhotas.

E assim viveria dom Rigoberto até os seus derradeiros dias.

Rigoberto somos todos nós, José Augusto Bezerra, Agamenon Bezerra, Francisco Auto, Eduardo Diatahy, Filomeno Moraes, Lúcio Alcântara, Ângela Gutiérrez, Ary Leite. Outros, muitos outros, hão de passar por esses recolhimentos de alfarrabistas honorários…

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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