Seu Antônio era marceneiro. Igual a São José. Quando era chamado para um trabalho, na casa dos clientes, vinha de ônibus, ensimesmado em seu silêncio tranquilo. Por ser parcialmente surdo, os clientes precisavam repetir várias vezes o que queriam, para que ele entendesse o pedido. Ou optavam por abrir os pulmões e altear a voz, até que ele escutasse as demandas.
No mais das vezes, o entendimento se estabelecia por meio de desenhos e rabiscos na cadernetinha que trazia, onde anotava dimensões e o material que iria usar, para produzir em sua marcenaria o que havia sido solicitado.
Apesar da meia surdez, a conversa se estabelecia. Uma filha casara com um português e se mudara para Vila Nova de Gaia. O filho dela, o mais velho, recebera o diagnóstico de hiperatividade. Meu neto é imperativo – ele dizia rindo. Nunca vi a incorreção no uso de uma palavra ser empregada com tanta propriedade.
Não possuía celular, Seu Antônio. Qualquer contato com ele era feito através de Dona Socorro, a esposa, responsável pelo atendimento ao telefone doméstico. Acho que a oficina dele devia ficar nos fundos da casa, daí a demora para atender. Vinha tranquilo, sem perder o fôlego, e com o telefone junto ao ouvido escutava tudo muito bem.
Leonardo, o filho mais velho, crescera ajudando o pai na marcenaria. Casara, tinha filhos, e cuidava do trabalho mais pesado, poupando o pai. Os dois fizeram trabalhos perfeitos para mim, recuperando o pé de um móvel, roído por um cachorro pequeno e feroz, restaurando um par de cadeiras antigas, que tinham pertencido a um tio, renovando os armários da cozinha.
Trabalhavam em silêncio, pai e filho. Ambos respeitosos e pacientes.
Passada a pandemia, precisei novamente dos serviços do Seu Antônio. Dona Socorro me atendeu. Ele morreu – ela disse. O vírus não tinha sido o responsável, e sim um apêndice supurado. Já estava com muita idade – esclareceu. Não suportou a infecção.
Lamentei o fato e parti para a tentativa de consolar a viúva. Pelo menos o Leonardo vai continuar o trabalho do pai, e dar segurança à senhora – arrisquei, cheia de boa vontade. O Leonardo morreu também – ouvi de Dona Socorro.
São coisas que pegam você de repente pela garganta, e trancam a sua voz.
Teve um derrame. De madrugada. A mulher dele ainda chamou um táxi, para levar ele no hospital, mas lá ele já chegou morto. Ainda ia fazer cinco meses da morte do Antônio. Está agora com dois anos, seis meses e doze dias que os dois se foram.
A muito custo, ganhei voz para algumas palavras de consolo. O tempo vai curar. Deus chama os bons. Que Deus dê forças a vocês. Os clichês.
Viúva, Dona Socorro. E sem o filho que sustentaria o negócio da família. Viúva, e mãe sem filho (ainda não foi criada, em nosso idioma, uma palavra que identifique os pais que perdem um filho, uma palavra capaz de traduzir o tamanho da dor).
A filha que mora em Portugal manda algum auxílio todo mês. O filho mais novo formou-se recentemente, mas está desempregado. É a vida – suspira Dona Socorro ao telefone, certamente pensando na marcenaria abandonada, juntando poeira, nos instrumentos de trabalho com as digitais e o suor do marido e do filho, nos medicamentos que o médico passou para ajudá-la a sair desse poço de trevas chamado depressão.
Cada qual com a sua cruz – é a sua voz de conformidade com o real, sua voz de resignação dois anos, seis meses e doze dias depois das perdas. É a vontade de Deus. É a vida – ela volta a suspirar. Em nenhum momento houve revolta em seu coração. É a vida – repete, e se despede de mim com um versículo da Bíblia: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.
Cada qual com a sua cruz. Dona Socorro aceita, resignada, a pesada penitência imposta sobre seus ombros, porque está amparada pela força da fé. É quando eu lembro do pedacinho de uma canção de Chico Buarque: “E eu que não creio, peço a Deus por minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar”.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.