“As ações devem ser julgadas de acordo com as intenções.” — Maomé
“À sua descendência, darei esta terra.” — Gênesis 12
No Oriente Médio, a fé não é mero pano de fundo cultural ou simbólico. Ela é, essencialmente, o cimento das instituições, o arcabouço das normas jurídicas e o motor dos projetos de poder. Ali, a separação entre religião e Estado, como entendida no Ocidente, é uma abstração inexistente.
O caso do Irã é particularmente emblemático. Supor que o líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei, seja uma marionete do aparato militar — especialmente da Guarda Revolucionária — é ignorar por completo a essência do regime iraniano. Trata-se, sim, de uma teocracia na qual o poder militar, econômico e político está subordinado às diretrizes da fé, como definido pela interpretação xiita do Islã.
O Alcorão não é apenas escritura sagrada. É constituição, é código de conduta, é doutrina jurídica e, em muitas circunstâncias, é também a gramática da guerra. A ordem social, a estrutura política e os preceitos legais estão profundamente amalgamados com os ensinamentos do Profeta.
Entre sunitas e xiitas, ainda que com divergências teológicas e históricas, o princípio comum é claro: governar é exercer a vontade de Deus na Terra. O Estado, portanto, não é uma construção secular, mas uma extensão prática da fé. Isso explica, de forma irrefutável, por que os conflitos naquela região, ao longo dos séculos, carregam inevitavelmente a marca da guerra sacralizada — expressão moderna de cruzadas, jihad, guerras pela defesa da fé ou pela expansão da promessa divina.
Qualquer análise que pretenda compreender as dinâmicas do Oriente Médio sem levar em conta esse elemento fundante — a centralidade da religião como vetor de organização social e política — não apenas erra, mas se torna absolutamente irrelevante.
A geopolítica da região não é apenas uma disputa por recursos, territórios ou influências. É, sobretudo, uma disputa simbólica e espiritual. Ali, a Terra não é apenas espaço geográfico. É legado divino, promessa feita por Deus a Abraão e a seus descendentes.
A própria constituição dos Estados na região é atravessada por essa lógica. As fronteiras são recentes, artificiais, herança dos acordos de guerra das potências coloniais europeias. Mas o sentido de pertencimento, o direito à posse da terra, o dever de defendê-la ou de reconquistá-la repousam sobre narrativas muito mais antigas, profundamente ancoradas na teologia e na tradição.
É nesse contexto que surge a questão da nuclearização do Irã. A busca pela bomba atômica, além de seu evidente valor estratégico e militar, possui também uma dimensão simbólica: garantir, pela força máxima, a continuidade e a sobrevivência de um projeto teocrático diante de inimigos percebidos não apenas como adversários políticos, mas como hereges, infiéis ou invasores históricos da ordem sagrada.
Naturalmente, essa possibilidade é vista pelos demais atores regionais — especialmente as monarquias sunitas e Israel — como fator de desestabilização permanente. Não se trata apenas de dissuasão militar, mas da eventual quebra de um frágil equilíbrio espiritual, político e civilizatório que estrutura, de maneira precária, a ordem do Oriente Médio contemporâneo.
Por fim, é preciso reconhecer uma obviedade que os discursos diplomáticos frequentemente evitam admitir: as culturas políticas predominantes no Oriente Médio não se moldam, historicamente, aos paradigmas democráticos de matriz ocidental. Isso não significa, necessariamente, a negação da liberdade, da justiça ou dos direitos — mas sim a existência de uma outra lógica, de uma outra arquitetura social e política, fundada na primazia da fé, na tradição, na autoridade religiosa e na ancestralidade.
O Oriente Médio, desde os tempos de Abraão, passando por Maomé e Jesus, até os conflitos atuais, permanece sendo um território onde a história da humanidade se entrelaça com a história do sagrado. É um mundo onde a fé não é uma escolha privada, mas um destino coletivo. E, enquanto isso perdurar, qualquer análise que se pretenda realista precisará compreender que ali, mais do que em qualquer outro lugar, Deus não é apenas uma crença — é uma instituição de Estado.
