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A Descoberta do inimigo: O desafio da democracia representativa; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

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Por Paulo Elpídio de Menezes Neto
Articulista do Focus

“Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não; a minha pátria é desolação. De caminhos, a minha pátria é terra sedenta. E praia branca: a minha pátria é
o grande rio secular que bebe nuvem, come terra e urina no mar”. “Pátria Minha”, Vinicius de Moraes

Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos, pintado por Jean-Baptiste Debret, por volta de  1830.

Mergulhamos nestas “terras brasilis” por entre águas turvas de inquietantes paradoxos. E não é de agora, faz tempo, lutamos contra a correnteza revolta de ideias improvisadas, de crenças envelhecidas e novidades improváveis que, a rigor, sequer são novidades. E a tal ponto haveríamos de chegar, em muitas décadas, séculos bem contados, que já não nos basta o desabafo de quem perdeu de todo a capacidade de enxergar o futuro.

Deixamo-nos dominar por credulidade ingênua de que, afinal, nem tudo está perdido.

As crises são, deveras, criativas para quem não perdeu nada
Há os que repetem com persignação a mantra de que “toda crise é criativa”, “unidos venceremos”, “é preciso pensar grande”, “é preciso rejeitar a teoria destruidora do quanto pior, melhor”, “somos maiores do que o mosquito”… O que mais assusta nesses transes patrióticos é que muitos acreditam nessas jaculatórias salvadoras. No passado, aceitamos que éramos uma “ilha de esperança e tranquilidade no mundo”, vivemos, orgulhosos, o “milagre brasileiro” e o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, convertidos às palavras da redenção.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em sua biblioteca, no bairro de Higienópolis, São Paulo.

Fernando Henrique Cardoso cunhou expressão que o acompanhou pelos dois governos e lhe traz, ainda hoje, sombrios aborrecimentos: às críticas de suas obras e artes chamou de “nhém-nhém-nhém”. Médici convidara os impatriotas a ir embora. Por agora, essas criaturas recalcitrantes ao convencimento da Revelação são batizadas de “derrotistas”, gente de vista curta, neoliberais” golpistas.

Enfim, somos, nós brasileiros, cidadãos de pouca-fé, não damos tréguas aos governos, desejamos o desastre, adoecemos por simples birra para ver o SUS pegar fogo e levar o sistema de saúde à inadimplência.

Imagem gerada por inteligência artificial.

Autopurificação política: modo de usar
Traço singular e simpático do caráter brasileiro está na sua capacidade de rir de suas próprias dificuldades, zombar das pequenas-grandes tragédias de sua vida como povo e nação, de recobrir as maldades, a desonestidade e a inépcia dos agentes do poder público com o manto irônico da anedota. Essa engenharia da catarse e de fuga dá-nos a capacidade de transformar certezas em dúvidas, crimes em virtudes, faltas em tropeços, amarguras em risos. E reduzir a hipocrisia do homem público (sem as mentiras, as verdades não existiriam…) a metáforas do bem fazer (o “rouba mas faz”), por obsequiosa renúncia da consciência.

O brasileiro cordial
Teríamos sido diferentes no passado? A dualidade que deu origem a muitos embates, ao longo de nossa História, ganhou, com o passar do tempo, formas novas, moldando-se a ideologias da moda e a novas circunstâncias sociais e econômicas.

A figura romântica do “brasileiro cordial”, difere da imagem construída por Sérgio Buarque de Holanda, não encontra paradigma verdadeiro em nossa vida nacional, monárquica e republicana. Esta imagem é um estereótipo descuidado, variante do que se poderia referir como uma das muitas “virtudes” do brasileiro. Elvia Bezerra (1) menciona o discurso de recepção de Manuel Bandeira a Peregrino Júnior, no qual destaca entre as virtudes do empossado, a “cordialidade” do brasileiro. Reportando-se a Ribeiro Couto, Bandeira atribui-lhe a invenção, “de uma feita”, da teoria do “homem cordial”.

Sergio Buarque de Holanda em sua biblioteca: um marco da ciência política e sociologia brasileira.

Sérgio Buarque de Holanda repõe, entretanto, o sentido que lhe emprestara em “Raízes do Brasil” (2): “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se e mandamentos e sentenças.” (3) Afirma e reitera SBH a percepção de que “nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”.

Não seria a polidez e a cordialidade formas estudadas de defesa diante da sociedade? No convívio que a politica impõe aos seus atores, estes anteparos de autoproteção estão estreitamente associados ao exercício da autoridade nas dobras do governo. Além assim, respeitados esses atributos heroicos, nunca fomos dados a grandes embates, além das longas porfias nas antessalas dos gabinetes do Estado. Nem mesmo nas ruas, nos espaços da controvérsia ou dos embates de armas fomos além da prudência diante das forças da ordem e da segurança pública. Em momentos raros, trágicos, entregamo-nos a esses impulsos, já apagados pelo tempo e pelas lembranças desfeitas na memória passageira dos brasileiros.

Somos, segundo certa imagem duvidosa – um bravo povo pacífico. Aprendemos a conciliar o inconciliável, com elevada elegância e uma certa inclinação oportunista. Em Mafra, onde o Regente Dom João conciliava posições adversas em relação às conquistas napoleônicas que ameaçavam a Península, havia políticos “ingleses” e “franceses” militando patrioticamente pelas “suas” razões de Estado. O jovem Regente punha-se nessa refrega diplomática como moderador distraído, afinal não seria ele que assumiria a responsabilidade pelo que viesse decidir… Celebramos essa abonadora experiência por todas as repúblicas, além das duas monarquias de Alcântaras e Braganças.

A palavra é a arma dos cidadãos de bem…
Tornamo-nos sede da Monarquia graças ao exílio auto-imposto pela Coroa portuguesa, sem escaramuças, com algumas diatribes verbais ao estilo lusitano e reclamações de cortesãos que abominavam os mosquitos e o mau cheiro das ruas do Rio de Janeiro. Fizemo-nos Império, independentes, em momento de exasperação do Príncipe, lá para os lados do Ipiranga, diante do espanto de tropa reduzida, na presença daquele ato insólito. Refregas aqui e ali. Batalhas verbais eloquentes.

A Princesa Leopoldina da Áustria na Sessão do Conselho de Estado. Pintura de Georgina de Albuquerque de 1922. Museu Histórico Nacional. A Obra retrata a sessão de 2 de setembro de 1822 do Conselho de Estado do Brasil, que precedeu a declaração da independência do Brasil. Estava presente na reunião José Bonifácio de Andrada e Silva, com quem Maria Leopoldina interage.

 

Algumas boas ideias “bonifacianas” logo desprezadas pelas intrigas cortesãs, e a firmeza de dona Leopoldina. Contornamos os antagonismos, ignoramo-los: escravismo, monarquismo/republicanismo, reinóis/brasileiros. Tudo para que, de repente, em noite aberta, ao fulgor da espada de um velho marechal, prenúncio de futura estátua equestre, nasceu a República: muxoxos jansenistas e monárquicos, adesões patrióticas, as persignações maçônicas, a ira dos fiéis servidores das Cortes, a incredulidade dos autóctones e a desconfiança divertida das nações amigas.

A chegada dos militares, o advento dos políticos convertidos às pressas da monarquia para as promessas republicanas. E tome-se lá 127 anos de velhas e novas repúblicas, “Estado Novo”, “Revolução Constitucionalista”, “Revolução pela liberdade, com a família”, e “Brasil, país de todos” e a sempre lembrada “Pátria Educadora”. Constituições, outorgadas, delegadas, com o crivo de autoridade dos artesãos da lei e do Estado de direito. Muitas mudanças, salvo as essenciais transitaram pelos balcões da coortes aliadas às justas da ordem.

Somos, segundo imagem duvidosa muito difundida, um povo pacífico. Nossas oposições e as contraposições internas dos atores políticos ou seja lá o que politicamente representassem, buscaram, sempre, nas horas mais frementes dos embates, a conciliação, a conveniência

tranquilizadora dos acertos, das alianças feitas, historicamente, “por cima”, bem ao gosto das elites e de suas ambições patrióticas. Ou pela convergência das afinidades corporativas e sindicais.

Sobre conflito de legitimidades: o “povo-eleitor” e o “povo-opinião
O Estado moderno está condicionado pelos novos controles sociais que não derivam unicamente dos controles legais e normativos, mas que, nem por isso, carecem de força para produzir efeitos e consequências nos amplos quadros dos espaços republicanos.

A ideia de “poder de supervisão”, “pouvoir de surveillance”, para Pierre Ronsavallon (4) surge com a Revolução Francesa e teve por objetivo “contrabalançar a tendência dos representantes a se autonomizarem”. É uma espécie de supervisão dos representantes da nação pela nação. Essa figura não se assemelha à forma dissimulada de democracia “direta”, a que se alude atualmente, numa tentativa de fratura do sistema republicano de representação, a exemplo dos conselhos dos sovietes, instaurados em 1917.

Nesse cenário, a revolução comunista ainda não lograra instituir e controlar o aparelho de governo do Estado que veio, et pour cause, chamar-se de soviético. O poder de supervisão a que alude Ronsavallon correspondia, de certa forma, à instituição de uma força de “desconfiança” envolvendo a disfuncionalidade do exercício do poder.

The Birth of Robespierre | History TodayRobespierre acreditava, com seu viés jacobino, que a “desconfiança é a guardiã dos direitos do povo; ela está para o sentimento profunda de liberdade assim como o ciúme está para o amor” (2006, 36). Essa vigilância realizar-se-ia pelos cuidados de velar, denunciar e avaliar, três fases do poder de supervisão.

Dessa forma o sistema eleitoral-representativo confrontaria diversas formas de “supervisão”. Embora correndo o risco de redução exagerada, seria possível contrapor-se ao poder do Estado e das formas representativas do seu exercício os controles da opinião. Os controles do “povo-eleitor”, representado pelos que foram designados pelas urnas e aqueles do “povo-opinião” expresso pelos órgãos de opinião, a mídia em suas múltiplas variações.

Nesse quadro, surge, no corpo das constituições modernas, a possibilidade da “deseleição”, uma forma manifesta de “democracia de sanção”, mediante procedimentos que frustram ou impedem reeleições em face de fatores, condições e circunstâncias legalmente inscritos. Essa forma de “deseleição” reafirma e fortalece o princípio do “impeachment”, ex post facto.

Em prática estimulada pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (mais tarde, virou Partido Nazista) cidadãos queimam livros em Berlim, em 1933.

A descoberta do inimigo: o desafio da democracia representativa
Georges Smiley, personagem de John Le Carré (6), assiste da janela da sua sala, quando o nazismo dava seus primeiros passos triunfantes, estudantes da juventude hitlerista atirando livros da biblioteca em uma fogueira no pátio da universidade. Nada pôde fazer, a não ser ficar fumando, com aquela alegria selvagem de quem descobriu, por fim, o inimigo.

Ficaremos nós à janela assistindo temerosos e convenientes ao nascimento de novos inimigos desta “pátria tão pobrinha”, “…uma ilha Brasil, talvez”, nas palavras ternas de Vinicius de Moraes? Quedamos, assim, contraídos, na passiva e frustrante posição de um coitus politicus interruptus? De uma espera exaustiva que não chega ao fim?

Notas:
(1) Élvia Bezerra — Três Retratos de Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, ABL, 2004, p.13/24]
(2) Sérgio Buarque de Holanda — “Raízes do Brasil”, Rio de Janeiro, 1936 – Livraria Editora José Olympio.
(3) Sérgio Buarque de Holanda — O Homem Cordial – Companhia das Letras/ Penguin–Rio de Janeiro, 2015.
(4) Pierre Ronsavallon – “La contre-démocatie: la politique à l’âge de la défiance”, Éditions du Seuil, Paris, 2006, p. pág. 35
(5) Roger-Gérard Schwartzenberg – “La Politique mensonge”, Éditions Jacob, Paris, 1998, 107
(6) John Le Carré –“O Espião que veio do frio”, Editora Record, Rio de Janeiro 2017

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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