A receita do pavão. Por Angela Barros Leal

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Era uma cidade afastada da Capital, e que eu não conhecia. O primeiro passeio seria ao Mercado Público. Sou mais uma a gostar dos cheiros e sons dos mercados. Esse ficava em uma parte elevada da cidade, de onde se deveria ver o mar, espalhado lá embaixo. Isso se a maré estivesse baixa, o que não era o caso naquele dia, e naquela hora. O mar retrocedera pelo menos um quilômetro, como a se preparar para um tsunami que não viria.

A água desaparecida deixava à mostra uma areia escura, uma substância em nada assemelhada a areia de praia, uma quase lama sem tesouros de espécie alguma – a não ser minúsculos caranguejos que corriam de um lado a outro, desenhando ideogramas com suas patas sêxtuplas.

No mercado, depois de passar por estandes vendendo alimentos e bebidas típicos, itens de vestuário, peças de artesanato, utilidades para casa e cozinha, uma variedade atordoante de produtos e opções divulgados com animação pelos vendedores, vi ao fundo de um estande um animal desconhecido, preso em uma gaiola.

Penas acinzentadas, de grande tamanho, traspassavam as grades da gaiola. Enrodilhado, o animal não permitia ser identificado na obscuridade do estande. É uma pavoa –, me disse a moça encarregada do negócio. O preço está bom.

O que faria eu com uma pavoa, me perguntei em silêncio, enquanto examinava a ave, tentando distinguir o bico da cauda, as patas dos olhos. Nada havia nela da beleza do pavão. Semelhança alguma mantinha com a mais resplandecente de todas as aves, aquela que materializa, sem pena (e sem trocadilhos…), alguns dos excessos de que só a Natureza é capaz.

Posso indicar quem vende pavão – a moça informou. Se a senhora quiser.

Pelo que disse, havia um casal, morador de um sítio um tanto distante, que criava pavões soltos no terreno da casa. Pavão não cabe em gaiola – completou, com praticidade.
Imaginei o jardim do casal: uma luxuosa extensão de verde, a se colorir a cada vez que os pavões abriam seus leques, ou arrastavam pela grama as suas caudas de penas, com a imponência de reis a caminho do trono.
Deve ser interessante ver a casa –, comentei com ela, uma casa com espaço suficiente para uma criação de pavões.

O povo diz que o dono da casa de vez em quando come os pavões – ela esclareceu. A mulher dele vende as penas na capital, depois de cozinhar receitas especiais para o marido. Dizem que quem come carne de pavão vai sonhar sobre o futuro, consegue adivinhar o que vai acontecer – a moça me informou.

Que apetite inusitado, o desse incerto senhor, esse herdeiro da gula insaciável da nobreza inglesa e, antes deles, dos imperadores romanos, vorazes por iguarias exóticas. Um homem capaz de sacrificar toda aquela plenitude de beleza, e de perder o lucro que obteria na venda, em troca de uma ou outra premonição, que nem sabe ao certo se irá acontecer.

Volto para casa sem pavões. Coincidentemente, dias depois encontro na internet uma receita datada de 1922, de um prato que tem pavão assado como ingrediente principal. Aliás, um dos ingredientes principais.
“Depene e limpe o maior pavão que encontrar”, instrui a receita, que traduzi informalmente. “Reserve os miúdos para o molho”. E prossegue, como se estivesse contando um conto de fadas. Ou de terror. “A seguir, prepare um peru e recheie o pavão com ele. Recheie o peru com um ganso, o ganso com um capão, o capão com um suculento faisão, este com um pato, o pato com uma perdiz, essa com uma codorniz, a codorniz com um pombo, o pombo com um maçarico, este com um ortolan, o ortolan com um pica-pau. Recheie o pequeno estômago dele com uma minúscula ostra”.

Ave Maria, digo eu (sem trocadilhos). Receita igual nunca vi. Um combinado extravagante de carnes brancas e escuras, de ossos tenros ou rijos, uma sequência de recheio após recheio após recheio de texturas desencontradas, de sabores conflitantes, disputando lugar no paladar dos comensais, ou pelo menos daqueles mais dispostos a suportar as lutas homéricas a serem deflagradas no interior de seus sistemas digestivos.

E o pavão, coitado, a estrela do pantagruélico prato, o pavão, criado para ser apreciado, nascido para ser visto, foi incapaz de sonhar que, um dia, sua preciosa carne divinatória poderia ser usada como envoltório em tão acompanhado fim.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

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