Álbum de viagem II; Por Angela Barros Leal

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Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus

Kadafi era um homem bom – afirma o motorista do aplicativo, um tunisiano radicado na Suiça. A frase reverbera dentro do carro e eu gaguejo uma contra argumentação qualquer, surpreendida. Desconheço a Tunísia, exceto o fato de ter como país vizinho a Líbia – berço de Muammar Kadafi, poder supremo daquele país entre 1969 e 2011 –, e de estar próxima à Sicília, quase tocando a ponta da bota italiana. A culpa é da mídia, que não informava a verdade – diz o motorista, olhando para mim pelo espelho. Kadafi era um homem bom para seu povo, dava casas, alimento, trabalho – eu escuto, ainda espantada.

O interior de carros de aluguel, sejam táxis, sejam veículos de aplicativo, se constitui como o único espaço em movimento no qual duas a cinco pessoas se veem confinadas, respirando o mesmo oxigênio por breve período de tempo, sendo uma delas um perfeito desconhecido. O silêncio impera entre os vidros fechados, e o ar por vezes se faz rarefeito. Não são lugares apropriados para discussões polarizadas, ou de longas explicações.

A mídia, sim – repito humildemente, culpando essa vilã do século XXI, tratando de desviar o assunto, chamando atenção para a beleza da paisagem que estamos atravessando, o admirador do Kadafi, eu e meu companheiro de viagem.

O motorista anterior ao tunisiano tinha sido um somali, ou somaliano, que logo reconheci pelo tipo físico, tão presente em Minneapolis, onde moramos, uma cidade-santuário, lar para quase 100 mil desses imigrantes. Sei que o território geográfico da Somália é estratégico no chamado Chifre da África; sei de seus temidos piratas, dramatizados no filme Capitão Phillips; e, o mais curioso, sei que o país não possui um Governo central, um sistema administrativo legalizado, formalmente estabelecido.

Como vocês vivem sem um Governo – questiono ao motorista, que dá de ombros. Pelo que entendo, de seu quase incompreensível sotaque inglês, as pessoas se amparam em clãs regionais, chefiados por grupos que aplicam suas próprias leis, e tentam cuidar do bem-estar dos seus dependentes. Com todas as boas intenções, e com ou sem Governo, a corrupção por lá parece ser endêmica.

Mais um dia de chuva, e o aplicativo nos designa a motorista Fariba, uma jovem senhora de voz de fumante, cabeleira crespa e ruiva. Sou persa – identifica-se ela com altivez. Não se diz iraniana, nunca. O país dela é a Pérsia, que deixou há 36 anos, depois de ter sido presa durante dois anos por não usar corretamente o hijab, o véu prescrito pelo islamismo.

Fugiu para a Suíça, casou, e teve dois filhos, que desconhecem a língua materna. Não têm ideia de tudo pelo que ela passou, porém entendem que a mãe possua suas razões para não retornar ao Irã. Do banco de trás do carro, vejo as estrelas e borboletas negras, tatuadas em relevo saliente, entre o braço e as costas dela, expostas pelas alças finas da blusa: uma das primeiras coisas que fizera ao sair da prisão tinha sido inscrever no corpo sua promessa de liberdade.

Uma outra manhã, enquanto aguardamos o horário do check-in no hotel, interrogo uma jovem que igualmente aguarda. Tatiana conta que é da Bielorrússia, país comprimido entre Lituânia, Letônia, Polônia, Ucrânia, e a imensidão da Rússia. Por pura coincidência, logo cedo eu lera uma notícia sobre a morte do ex-Embaixador do país dela na Alemanha, despencando de uma janela. Tatiana cresce os olhos azuis: Já é o segundo – ela me informa em voz baixa, e nos olhamos no silêncio das tantas coisas que não devem ser ditas. Paredes têm ouvidos, ela bem sabe, e essa é sua vida real.

De volta a Portugal, a sucessão de brasileiros no guidão dos carros de aplicativo. Um deles, o mais irrequieto, enfileira queixas no longo trajeto. Tinha suas razões: um homem com três nacionalidades, conhecedor de quatro idiomas, antigo componente de uma organização pacifista, à qual dera seu próprio sangue, tomando um tiro na coxa durante confrontos em Serra Leoa, um homem com histórias aventurosas capazes de preencher muitos livros, se ver forçado, por questões financeiras, a se restringir a uma existência burguesa, acompanhando nas ruas a mudança de cores das folhas das árvores a cada estação – era exigir demais.

Sim, sim – assentimos já quase desinteressados, a caminho de embarcar de volta para casa. Curiosidade também tem seus limites.

Leia as duas crônicas que completam a trilogia
+ Álbum de viagem I
+ Álbum de viagem III

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

 

 

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