Há sinais inquietantes de que o hábito da leitura está em queda no mundo. No Brasil, recente pesquisa revelou que pela primeira vez o número de pessoas que leram ao menos um livro no espaço de um ano foi menor dos que, no mesmo intervalo, não leram nenhum. Levantamento semelhante em Portugal, contratado pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), demonstrou um aumento de 7% na venda de livros em 2023 quando comparado ao ano anterior.
A mesma investigação revelou uma ligeira subida no número de portugueses que adquiriram livros em 2023 que cresceu de 62% para 65% sendo que 93% dos compradores indicaram preferir o formato impresso para ler. Se ainda não é para comemorar não deixa de ser auspiciosa notícia vinda daquele país. Sabemos do quanto o costume, em risco, contribui para a formação e desenvolvimento intelectual dos jovens.
São vários os fatores que contribuem para a diminuição do número de leitores. O advento da internet, da comunicação instantânea, seduziu os jovens que aderiram à novidade adotando um estilo e vocabulário próprio de largo emprego nas redes sociais. Se a morte anunciada do livro impresso para acontecer em breve não houve, como foi o caso da indústria fonográfica, o mundo digital colaborou para que o interesse pelo livro impresso diminuísse sensivelmente.
Os textos longos deixaram de atrair leitores, relegados ao conhecimento indispensável para assegurar o acesso à universidade. O que era prazer passou a ser odiosa obrigação. A par disso nos últimos anos a cadeia do livro sofreu importantes mudanças nos seus diferentes segmentos. Uma dessas alterações mais significativa foi a que ocorreu com a comercialização no varejo, as livrarias.
Os problemas de estacionamento e a insegurança urbana, além da cópia de soluções alienígenas identificadas com a ideia de progresso e modernidade impulsionaram a implantação dos grandes centros comerciais, os shoppings. Paralelamente a isso surgiram as mega livrarias reunidas em cadeias que se distribuíam pelas grandes cidades do país, muitas delas sediadas nesses grandes espaços comerciais dotados de diversidade de lojas, restaurantes, cinemas e outras formas de divertimento voltadas sobretudo para crianças.
Foi a época das grandes redes, Siciliano, Saraiva, Cultura, Leitura e Travessa, essa última de menor dimensão, ainda coexistem, As demais desapareceram ou agonizam, como a Saraiva. O novo formato levou ao fechamento de muitas livrarias de rua, nos centros das cidades e nos bairros. Mais do que livros as livrarias de shopping ofereciam também materiais correlatos e itens ligados à informática.
Livrarias sempre foram pontos de encontro. Locais para tertúlias literárias de pequenos grupos de pessoas afins, ocasião para tomar conhecimento de novos lançamentos e interagir com o livreiro, com frequência o próprio dono, e mesmo com os balconistas que já conheciam os gostos dos fregueses assíduos. Os cafés das mega livrarias surgiram para preencher essa histórica função, aumentar a receita captando o público que costuma flanar em shopping e encontrar amigos para um dedo de prosa.
Estes estabelecimentos também abriram espaços para apresentação de livros, realização de palestras, sempre com o objetivo de promover maior proximidade com o público. Os cafés assumiram tal dimensão que levou alguém a dizer em tom de chiste “é bar ? livraria ? café ? Tudo isso junto e misturado : confira”. A compra virtual de livros através das grandes plataformas, como a Amazon, reduziram o faturamento das livrarias organizadas segundo o modelo tradicional o que certamente contribuiu para que muitas cerrassem as portas.
Pena que um pedaço da história do comércio livreiro tenha desaparecido no curso dessas mudanças. “Ao Livro Verde”, em Campos, Rio de Janeiro, a mais antiga livraria do Brasil fechou depois de funcionar durante 178 anos. Já em Vila Real, Portugal, teima em existir uma congênere, a “Branco”, há 175 anos nas mãos da mesma família. Um fenômeno de longevidade comercial em meio ao turbilhão de inovações processadas com surpreendente celeridade.
Com o intuito de ampliar o número de frequentadores a livraria Arquivo, de Leiria, Portugal, que já foi eleita pelo público como a de “melhor ambiente” naquele país, levou sua proprietária Alexandra Vieira a propiciar um espaço para dança às sextas-feiras, ao fim da tarde. Assim a Arquivo passou a ser uma livraria onde também se dança. Na palavra de uma contumaz habitué “essa coisa é um oásis mascarado de livraria. Este sítio tem livros, sim, mas tem tudo o resto que os outros não têm”
Como a moda passa, livrarias começaram a se organizar em pequenas redes, concentradas em cidades de grande porte, vide São Paulo, distribuídas por bairros, em unidades de menor porte, mais acolhedoras. A criatividade dos comerciantes e a capacidade empreendedora dos empresários geram exemplos bem sucedidos de superação dos obstáculos que surgem com a renovação dos modelos de comercialização.
Se queremos parar de formar doutores incapazes de escrever um bilhete por falta de leitura na sua formação o governo tem que levar a sério o problema e instituir uma política efetiva de estímulo à leitura. Nesse sentido o pouco que existe é incipiente e desarticulado. A dificuldade começa pelos professores, já que eles mesmos em sua maioria não leem.
Iniciativas pessoais e de organizações não governamentais desenvolvem ações para a formação de leitores o que é animador mas insuficiente diante da dimensão do desafio que se coloca. Portugal, por exemplo, criou o cheque-livro um programa do governo reservado aos jovens que completaram 18 anos em 2023 e 2024 destinado à aquisição de obras, não necessariamente didáticas.
Recentemente, no mesmo país, foi apresentada, pela segunda vez, uma petição à Assembleia da República solicitando que os médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o SUS deles, sejam autorizados a receitar livros. Certamente em apoio à biblioterapia que começa a ser considerada uma auxiliar terapêutica nos transtornos mentais.
Recomendados acertadamente livros podem ajudar a manter o equilíbrio psicológico dos que momentaneamente necessitem deste tipo de apoio. O que faz falta é um projeto consistente, por parte dos governos, para vencer o dragão da ignorância que produz analfabetos funcionais em larga escala perigosa feição que arrisca desumanizar de vez a sociedade.
Os que defendem o livro sem preocupação com a formação de leitores contribuem inconscientemente para seu fim a longo prazo. Sem leitor o livro não faz sentido, é apenas um objeto inútil, no máximo um adorno para decorações pretensiosas, ou alvo de colecionadores possesivos, sem serventia alguma.
Fortaleza, 17/02/25
