As infindáveis raízes. Por Angela Barros Leal

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O padre Baltazar Estaço (assim mesmo, Estaço) entrou no cárcere da inquisição, em Coimbra, no dia 28 de julho de 1614, aos 44 anos de idade. Vinha forçado, é evidente, mas nem por isso deixava de exibir, aos curiosos que costumavam se aglomerar no entorno da casa da galé, parte significativa da sua riqueza terrena. 

Trazia consigo não apenas seu guarda-roupa de mantos, barretes, calções, meias de linho, camisas, capas e coletes, mas igualmente seus itens de cama e mesa (não há referência a banho), como colchão, travesseiros e respectivas fronhas, guardanapos, toalhas de mão e de mesa, até mesmo uma alcatifa, um tapete, qual estivesse indo participar de temporada festiva, e não de sofridos interrogatórios. 

Esses bens eram uma parcela minúscula do que possuía, de raiz ou pelo amealhar de riquezas que o cargo no bispado de Viseu, região central de Portugal, a ele possibilitara. O inventário doméstico, elaborado no dia primeiro de agosto daquele ano, mencionava móveis rebordados em ouro, cadeiras de espaldar, uma harpa e uma viola, caixões e estantes de livros, sete ou oito colchões – além do que levara para Coimbra –, almofadas, um cordão de aço com um crucifixo de ouro, colheres e garfos de prata, porcelana da Índia, cobertores com barras em veludo, o luxo macio das peles para agasalho, algo que deveria impressionar os visitantes da sua casa. Ou as visitantes. 

Dois anos mais tarde o padre ganhava um acompanhante em sua cela, para, de certa forma, protegê-lo. Os bens que havia levado não aliviaram sua pena, nem o impediram de tentar o enforcamento, angustiado pela longa espera. Talvez a tentativa tenha servido para rememorar sua existência aos carcereiros, sendo transferido para Lisboa em 5 de março de 1617.

Não praticara o crime de judaísmo, nem de apostasia, nem de supostas bruxarias e encantamentos, como constava no processo da maior parte dos acusados. Seu crime se configurava mais prosaico, mais permanente, mais banal. O padre Baltazar Estaço amava as mulheres.

Ou pelo menos era o que afirmavam a viúva Ana Fernandes, a jovem Violante, “de 18 anos e muito bem parecida”, Ana Duarte, a quem na hora de uma confissão o padre elogiara os “bons medronhos” (fruto redondo, amarelo ou avermelhado que brota do medronheiro, árvore dos solos pobres das regiões rurais de Portugal), e tantas outras mulheres que se alinharam e se aliaram para falar sobre ósculos e amplexos, distribuídos ou solicitados pelo padre.

Em defesa própria, em carta manuscrita ainda março daquele 1617, alegava ele sofrer de triste enfermidade: a incapacidade de seu corpo para gerar calor. Desde o tempo em que permanecera em Évora, a terra natal, onde tomara “muitos soros e muitas cousas frias”, vivia permanentemente enregelado, fato que o obrigava a utilizar um colete dia e noite, colete esse que encobria seu corpo, do pescoço aos joelhos.

Era utilizando essa versão extrema de um cinto de castidade que ele solicitava às piedosas mulheres da terra o dever cristão de aquecê-lo, depois de despidas de suas vestes de cima, usando apenas o tradicional camisão de baixo, que repousassem a seu lado entre peles, cobertores, lençóis e rico mobiliário, uma delas, duas ou mais a cada vez, e que assim o acalorassem, o esquentassem com a chama de seus corpos jovens.

A carta deve ter provocado insinuações de sorrisos no rosto impassível dos inquisidores. De pouco adiantou o apelo escrito. Foi o sacerdote mandado ao tormento, supliciado com santos requintes, mantendo sempre a versão de ser pura verdade seu estranho caso de “friagem”. 

Amigos influentes intercederam, devotos e devotas se mobilizaram, o renome da família dele, enfeitada de padres e freiras, deve ter exercido algum efeito na corte inquisitória, e Baltazar viu a liberdade no final de 1621, sete anos depois de ter entrado, com pompa e circunstância, na primeira cela em Coimbra. Teve sua pena de cárcere perpétuo comutada em degredo para o mosteiro de Belém.

Antes de retornar aos braços cálidos de Deus, ou ao abraço bem mais fervente de entidades outras, em data que resta desconhecida, Baltazar Estaço deixou manuscritos e livros de poemas em que condenava as vaidades do mundo, apresentando-se ele próprio como exemplo de humildade, além de incidir, aqui e ali, em louvação aos tentadores medronhos.

Desvairado Baltazar. Como se não fosse, ele próprio, mais um fruto azedo dessas árvores da falsidade e do desrespeito, com suas infindáveis raízes que se estendem do início dos tempos até os dias de hoje.

 

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