Não fosse por cisma ou fria decisão de quem puxa os cordões dos mortais, transeuntes desafortunados neste vale de lágrimas, Constantino Dias Duarte, mais conhecido por “seu” Sete, que este era o seu número de matrícula como carregador da Infraero no Aeroporto Pinto Martins, teria chegado aos cinqüenta anos na árdua profissão que lhe foi reservada dos seus oitenta e quatro anos bem vividos. Morreu do coração, esta valente CPU, unidade central de processamento de dados do nosso computador interior à qual se recolhem as aflições, as esperanças e as frustrações da cada dia, os desejos, as fantasias e as quimeras que acodem os humanos na sua desafiadora lide pela sobrevivência, e na desassossegada espera da morte.
A estória deste homem, de quem muitos se fizeram amigos, segue a trajetória dos simples, dos que abriram caminho sobre os infortúnios da sorte, sem deixar-se, contudo, submergir na amargura do desengano, agarrado àquele fio de esperança com o qual as criaturas de coragem fiam e tecem o seu destino. Veio do interior, órfão, seguindo os caminhos, mil vezes percorridos pelos desvalidos da sorte, em busca das promessas incertas da cidade grande. Conheci-o como funcionário da Universidade Federal do Ceará, levado por Antônio Martins Filho, e já por este tempo, carregador no aeroporto, onde prestava seus serviços, com a alegria servida de bom humor de quem reconhece a utilidade do que faz. Trinta anos, passou-os na UFC, mourejando como tarefeiro nos serviços gerais, classificação emprestada, no serviço público, às tarefas múltiplas, embora inespecíficas, dos que ganham pouco e colhem escassos reconhecimentos. A aposentadoria devolveu-o por inteiro, finalmente, à rotina da carretagem aérea, comissionado como “carregador”, o “Sete”, e ao convívio dos amigos e clientes habituais. É verdade que deles não se afastara enquanto duraram, por trinta anos, os seus deveres de funcionário público. Exercia cumulativamente as suas atividades, de forma judiciosa, estendendo suas horas de trabalho no aeroporto, “bico” honesto que lhe rendia parcos provimentos, embora não lhe faltassem as alegrias do bulício dos passageiros e embarcadiços.
Contava-se à larga a seleta clientela entre políticos, empresários e figuras da sociedade. Não eram poucos estes amigos que mexiam com a sua modéstia, dado que a deferência no trato era seguida, não raro, de justa compensação. A paga pelos seus serviços nunca foi para ele, entretanto, o essencial do seu “negócio”, empreendimento feito de cordialidade e afeição, nele tendo investido todo o capital do seu otimismo e da boa fé de homem de bem. Dos seus amigos, como a eles se referia com orgulho, muitos o ampararam em momentos difíceis, nos esmorecimentos de uma saúde tornada precária pela velhice inexorável e os solertes padecimentos.
Constantino fez do aeroporto a sua casa e da condição de carregador a sua ligação com o mundo. Enfermo, penitente dos desalentos que o levariam à morte, dizia da sua vontade de retornar à “sua” vida, ao encontro dos pedaços de sobrevivência que lhe faltavam. Talvez por essa razão, preferiu morar nas imediações do aeroporto, em uma casa simples, de onde via os pousos e decolagens e ouvia o doce arrulhar dos aviões de carreira. Afinal, ali plantara os sonhos vividos, as quimeras acalentadas, as lembranças guardadas dos personagens escolhidos, das suas estórias, o balanço definitivo dos seus bens de raiz.
A imagem evoca a figura de Viktor Navorski, personagem interpretado por Tom Hanks em “O Terminal”, chegado de um país do Leste ao aeroporto de New York, justamente quando, ocorrera golpe de estado em seu pais natal, tornando-o, dadas as circunstâncias, imigrante indesejável pelas autoridades locais. A ficção reproduzia, como se soube, fato real e o tormento dos seus personagens, por se tornarem, repentinamente, apátridas, segundo a ordem das coisas e a lógica da diplomacia, residente forçado de um terminal de aeroporto, sem procedência identificada, nem destino aceito. O terminal de Constantino não lhe trouxe sofrimento, salvo o dos atropelos dos embarques e desembarques e o volume das malas que, na mesma medida da idade chegada, começavam, a pesar, inexplicavelmente, segundo lhe parecia, mais do que de costume. Ao contrario, prometia-lhe a felicidade de quem busca a liberdade na quebra dos cadeados que nos prendem à rotina da vida e às imposições da sorte. Encontrou-a lá, como já a descobrira com a família, rodeado pelos filhos que velaram com amor os seus derradeiros dias.
