E se… Por Angela Barros Leal

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Duas jovens conversam no banco de espera do abrigo do ônibus, e eu sento junto a elas.  Não vou seguir para lugar nenhum, mas após quase 2km de caminhada o abrigo do ônibus me parece estranhamente convidativo, permitindo ver uma ponta de mar. E se eu tivesse ido sem ele – uma das jovens pergunta à outra, enquanto me ocupo em atar os cadarços do tênis E se ele estivesse com aquela outra lá – rebate a amiga, olho na tela do celular. Sou forçada a confessar: amo toda frase e pensamento iniciado por se. Não conheço título mais belo que o de Ítalo Calvino: Se um viajante numa noite de inverno, título capaz de expandir a imaginação e abrir horizontes para a fragmentada estrutura por ele narrada.

As duas moças que avaliam o se particular de uma delas não me dão atenção, é claro. Pertenço à geração das mães, das avós. Sou uma não-pessoa, um não-ser a quem elas são cegas e surdas. Se ele tivesse dito isso, aí é que eu não ia de jeito nenhum! – enfatiza a primeira. Mas se ele estivesse te enganando… – provoca a segunda, jogando os cabelos lisos da esquerda para a direita e vice-versa, como parece que fazem as celebridades.

Ora se –, penso eu, acompanhando o movimento dos carros, ouvidos meio atentos à conversa das duas, interessada menos no leque de possibilidades que se abrem para o dilema delas, entre o ir/não ir, e mais entregue ao fascínio específico embutido em palavra tão pequena quanto poderosa. O se é rebelde, é transgressor. Revira de ponta cabeça a ordem natural das coisas. Se é o malicioso sussurro da serpente, o cicio sonoro das cigarras, o silêncio surpreso da hora da decisão. É o sinal simultâneo do que não foi, ou do que poderia ter sido. É o ciclo incessante do nosso livre arbítrio, a semente da nossa eterna insatisfação.

Livros foram escritos tendo como enredo o se. Filmes foram roteirizados a partir de um e se. Edifícios e cidades ergueram-se alicerçados no desafio do se. Vidas foram definidas por esse mínimo agrupamento de letras, uma espécie de sinalização de encruzilhadas, um indicativo de caminhos, uma bandeira acenando nossa liberdade de escolhas. As especulações das garotas não perdem o foco da aparente relação tripartite entre um anônimo objeto masculino de afeição e dois corações femininos, um dos quais batendo a meu lado, na brisa do fim de tarde. A cada diálogo, o ir/não ir delas alcança a grandeza preocupante de um ser/não ser macbethiano.

Posso forçar a memória, ou pesquisar agora as regras da gramática, para encontrar as funções do se. Mas, caso o faça, não estaria autorizada a dizer que um se, sozinho, soa mais afeito a questões passadas, e que o e se, mais complexo, frequentemente aspira projetos vindouros. Também não poderia dizer que o acessório predileto do se é o ponto de interrogação, muito embora, quando enunciado na imperativa voz materna, costume vir acompanhado por um enfático ponto de exclamação. Não é assim que são escritos os Manuais gramaticais, nem é o que permite a norma culta. Enquanto as meninas costuram seus caminhos resolutivos, entre um ônibus e outro, prefiro recuar no tempo: e se não tivesse acontecido a grande explosão, o Big Bang que originou nosso planeta? E se Deus nos tivesse feito de luz e energia pura, ao invés de barro e costela? E se nós evoluímos diretamente do pó das estrelas, e não de primatas? E se não possuíssemos o dom da memória, nem o talento maior do esquecimento? E se nosso pai não tivesse conhecido a nossa mãe?

Um freio ruidoso sobre o asfalto e um sopro de ar quente silenciam as meninas em seus diálogos. Não visualizo o destino indicado no painel eletrônico acima do para-brisa. A porta dianteira abre, elas entram, e eu levanto do banco devagar, sondando alternativas: e se eu deixar de lado a caminhada, pisar nos degraus metálicos e embarcar também nesse ônibus? E se, a partir do ponto final dele, eu seguir em outro, e mais outro? Não é assim que funciona. Como acontece com tudo que existe sobre a Terra, até o e se possui sua função teórica, seus limites e seu prazo de validade, justamente para transformar seduções semelhantes em simples sonhos. Mas sendo o se uma porta aberta, um dia, quem sabe se…

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

 

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