[Quando o jornalismo não era, ainda, “mídia”]
Dorian Sampaio haverá certamente de ser lembrado por muitos motivos e justa causa.
Pelo bom humor, pelo elevado senso crítico, pelo manejo da sátira. Pelo domínio da palavra, como orador, jornalista e crítico acerbo da imbecilidade coletiva.
Começou o seu jornalismo com Jader de Carvalho, no Diário do Povo, em companhia de uma coorte de jovens brilhantes, Olavo Sampaio, Lúcio Lima, Manuel Lima Soares (Neo) e um dos filhos do casal — CId — fundador do vibrante jornal. Dona Margarida, a matriarca, pulso forte, escritora e jornalista resistente às ondas autoritárias que surgiam das velhas tradições aparentemente adormecidas.
Por esse tempo, era ela o único exemplo de mulher com opinião própria, à moda de Rachel de Queiroz. Bárbara de Alencar poderia ser lembrada pelas mesmas virtudes peregrinas…
A minha avó, Oda, seria uma agitadora a seu modo. Grevista, encarapitada nos controles de um bonde da Ceará Light, tomado por um assalto libertário, na praça do Ferreira, ao tempo da Interventoria do Estado Novo… Sorte não lhe faltou, entre tantas e ameaçadoras façanhas. Não aparara o cabelo, impulso revolucionário, inaceitável à época dos começos da arrelia feminista — tampouco usara o batom para descaracterizar as conquistas do capitalismo…
Menino ainda, subia da praia de Iracema até à rua Agapito dos Santos, no Jacarecanga, em minha bicicleta, a levar os textos dos artigos de meu avô, Paulo Elpidio, para o “Diário”. Aquele nicho combativo fazia limites com os Klein por onde deitei ternos e alongados olhares adolescentes…
Essa turma precoce de anunciados revolucionários da imprensa de Fortaleza, fez-se pela cooptação intelectual e pelo destemor de Jáder. Sedução irresistível que os arrastou do velho Liceu do Ceará para aquele centro de insurretos intelectuais. Dorian Sampaio era um deles.
Fez de tudo o moço Dorian e mais alguma cousa com a inteligência a rebentar em borbotões de talento. Formou-se dentista, sabe Deus por quais imposições do destino. Se teve pacientes sob as suas atenções, ninguém sabe ao certo. Explodiu, porém, com os “meninos do Jader” por conta das leituras transgressoras. Por aquele tempo, como agora, pensar era um delito premeditado e criticar a autoridade — um risco calculado a que muitos resistiam. Menos aquela turma.
Foi político, alcançado pelos controles do Estado e das oligarquias provinciais. Elegeu-se deputado, após exercer uma liderança estudantil poderosa. Nesse ínterim, fez teatro com Eduardo Campos, e interpretou as hesitações de Poncio Pilatos nas encenações da Semana Santa, e nos pastoreios do Alagadiço e do Bom Pastor, nas vizinhanças da praça Fernandes Vieira, no Jacarecanga.
Perdeu o mandado de deputado em uma dessas ondas intermitentes de limpeza ideológica que grassam entre democratas de boa índole… Tornou-se preso político, desvalido de ajuda, eis que as lideranças do PSD e no entorno partidário já se haviam rendido aos acenos e ameaças dos revolucionários fardados e dos civis de índole patriótica.
Passada essa avalanche de exaltação cívica, sentado o pó das adesões convenientes em tempos seguros, Dorian persistiu na luta, sem jornal (fundou um, por conta própria), sem eleitores, mas dominado por uma incontrolável força de contestação. Mais ferina e perigosa, pois carregada de sátira e e ironia para todos os gostos.
Poderia continuar a esmiuçar a vida deste temerário Dorian, que não me faltariam revelações oportunas, outros, entretanto. já o fizeram, cronistas e biógrafos respeitados.
Valho-me, por último, dentre lembranças, lembradas e esquecidas, para trazer aquela que foi a crítica de maior peso que lançaria sobre políticos e a política dos cearenses.
Jáder de Carvalho deixaria a crítica veemente em três romances “à clef” sobre o substrato vazio da sociedade cearense, em títulos marcantes: ALDEOTA, DR. GERALDO e SUA MAJESTADE, O JUIZ.
Dorian não daria por menos, ao criar a “Prefeitura Particular de Fortaleza”,
e ao fazer-se “prefeito particular” da Cidade.
Terá sido o maior libelo construído sobre as íntimas relações políticas e endogâmicas que fazem da política partidária, no Ceará e em outros lugares do planeta, uma ação familiar e entre amigos.
Não por acaso, um grupo de médicos instalaria, a seu tempo , um “Pronto Socorro Particular”. Mais contagiante teria sido essa onda de privativismo, não fosse a necessidade que temos, nós, os cearenses, da proteção do Estado e dos provimentos de bens de guarda e de consumo que ele nos pode proporcionar…
Dorian sabia das coisas. Grande Dorian.