Iniciar um texto com críticas à primeira-dama Rosângela Lula da Silva (Janja) nos tempos que correm causou-me temor. O receio do possível “cancelamento” sob acusações de “misoginia” amedronta.
As matilhas digitais são barulhentas, impiedosas e perigosas. Só os que estão do seu lado podem expressar-se e, mesmo, existir.
Mas, vamos lá! O exercício da crítica, em uma democracia, é fundamental. Estamos em uma (democracia) (?!).
Pessoas públicas, sejam as “eleitas”, como os governantes e os mandatários, ou aquelas que decidem por sê-lo, estão, por natureza, expostas à crítica, aos juízos da opinião pública.
E Janja, como disse desde que Lula venceu em 2022, escolheu não ser, em suas palavras, uma primeira-dama “convencional“, aos moldes de uma mulher “bela, recatada e do lar“.
Assim sendo, suas movimentações, especialmente aquelas que apontam para claras contaminações entre o público e o privado no Brasil, são passíveis de críticas, de juízos, de avaliações. E nossa atual primeira-dama não cessa de dar insumos à opinião pública com fatos que vão exatamente na direção do familismo, e de suas imposição à res publica (coisa pública), tão estudado pelo pensamento sociológico brasileiro.
Na mais recente delas, durante jantar com o presidente chinês Xi Jinping, Janja teria falado sobre os efeitos da rede social Tik Tok no Brasil, pedindo a ajuda para uma sua regulação no país. A razão da ajuda se justificaria, especialmente, pelo fato de uma plataforma favorecer a proliferação de políticos e ideias de extrema-direita.
Soberania nacional? Às favas!
Primeiro, o vazamento da conversa/solicitação de Janja ao chinês foi, na boa gramática do nosso tempo, tida como “machismo” e “misoginia“, tudo, segundo Janja, “amplificado” pela cobertura midiática do fato.
Depois disso, estranhamente, o presidente Lula veio a público (de modo visivelmente contrariado) para “estranhar” o fato da conversa entre sua esposa e o presidente chinês “ter chegado à imprensa” (talvez ele esqueça-se que uma das funções da imprensa seja apurar fatos, especialmente os que dizem respeito ao público), uma vez que, segundo Lula, a conversa, “durante o jantar“, teria sido “algo muito confidencial e pessoal“.
Imagine você: dois presidentes jantando, conversando sobre as duas nações, e isso ser algo “muito confidencial e pessoal“.
Pois bem, Lula acabou por assumir a autoria do conselho/pedido a Xi Jinping: “eu fiz a pergunta, não foi a Janja“, e ela, segundo Lula, “não é uma cidadã de segunda classe“.
Além disso, Lula aproveitou a repercussão para passar recados a seus ministros: os incomodados com Janja no governo estão liberados para pedir para sair! Nosso bom e velho: os incomodados que se retirem!
Ninguém disse que ela o era.
Nesta segunda-feira (19/05), Janja aproveitou a abertura de um evento para mandar seu recado: “não há protocolo que me faça calar“; “como mulher, não admito que alguém me dirija dizendo que eu tenho que ficar calada“.
Indivíduos que chegam ao poder têm dificuldades em compreender os seus limites, especialmente em ambientes republicanos. As dificuldades se achegam, também, daqueles que orbitam o espaço dos poderosos; sobretudo, a família em cujo seio o poder está estabelecido.
Janja é apenas mais uma amostra dessa secular gramática de relação entre o público e o privado, na clássica confusão entre “meu lar” e o “lar onde habita a República”.
Como esquecer, durante a gestão Bolsonaro, as críticas que se faziam às ingerências de Carlos Bolsonaro no governo de seu pai? Muitas notas e editoriais foram publicados.
Nossa atual primeira-dama sentiu-se muito à vontade para, ainda em 2022, anunciar em alto e bom som que seria uma primeira-dama diferente, “presente”, com visibilidade pública. Só não contava, ou talvez desconhecesse, que isso lhe implicaria ser alvo de críticas, das mais diversas, como sói acontecer com todos e todas que se aventuram em anunciar-se e comportar-se como pessoas públicas.
E isso, para parafraseá-la, “mesmo sendo mulher“. Sim, numa democracia, homens, mulheres, brancos, negros, pobres, ricos, gays, heteros… todos que se aventuram na tal esfera pública, no universo da visibilidade.
Na lógica da casa e da rua que impera no Brasil, para lembrar Roberto DaMatta, pôr os pés para fora da casa é expor-se aos perigos da rua, e dentre eles está … a crítica.
Talvez, a primeira-dama não esteja acostumada, ou talvez a vida no Palácio a tenha descostumado.
A democracia, Janja, tem dessas coisas.
Não se preocupe: ninguém te calará! Não calarão, muito menos, a seus críticos, sempre que estes, como eu, vejam razões para isso.
E não será, de minha parte, machismo ou misoginia. Será exercício da crítica democrática, como tantas vezes fiz/faço às Michelles, Bias, Carlas, Doutoras e tantas outras. E a muitos, muitos, muitos outros.
É que, novamente, a visibilidade pública produz exatamente isso.