Kafka é ser excepcionalíssimo, natural conclusão ao ler “Kafka, os anos decisivos”, o segundo tomo de três livros retratando tão única pessoa.
Essas linhas resenham esse livro, estupendo livro.
O ano estreou bem, na confirmação dos livros escolhidos.
Dois livros de psicanálise, assunto sempre instigador, a piscar o olho a pontos resguardados, a bater à porta da elusiva resistência.
Não vamos explicar tudo pela psicanálise, não vamos explicar tudo por nenhum soberano ponto de vista, procedimento um dia por mim adotado, na adesão a minha querida turma, nos saudosos anos de juventude, de movimento estudantil, sendo a condição humana decifrada aplicando-se a fórmula “luta de classes”.
Sim, nada de voz única, nada de deslembrar a melodia e o contraponto; entretanto, essa medida de maturidade inclui a psicanálise, esse atrevido campo do saber.
Havia constado, dentro do plano de leituras para 2025, a diretriz de não mais ceder à excessiva presença das biografias.
Mas, me digam, quem mesmo consegue manter essas metas secundárias? Ou mesmo as metas principais? Quem manda, de fato, em nossas escolhas? Seria o prazer da repetição? Sempre me vem o sofrido personagem de Graciliano em Angústia: “o pior de tudo é que não consigo mudar”. Ou a síntese do autor desse livro sobre o Kafka: “todos sabem que a consciência estava perdendo poder nas mãos de Freud”.
Deparei-me na livraria com a biografia do Kafka. Três volumes (apenas dois, o segundo e o terceiro, estão traduzidos e publicados no Brasil).
Fitei os dois livros e segui em frente, firme no roteiro estabelecido pelas mencionadas metas; e assim vamos dar preferência a outros livros, outros ares. Depois de duas voltas pela livraria, voltei ao mesmo lugar e peguei o livro “só para folhear rápido”. Irresistível. Grudei. Avancei em suas 585 folhas.
O alemão Reiner Stach mobilizou suas forças na composição dessa jóia biográfica; em sua juventude graduou-se em Literatura, Filosofia e Matemática.
As quinhentas e oitenta e cinco páginas do livro não são preenchidas amontoando-se informações anódinas sobre o conspícuo biografado, mas pela erudição articulada em estado de arte pelo autor.
O autor cuida de avisar a seus leitores de seu rigor na fonte, de que nada foi inventado.
Registro também o primor da tradução.
A poderosa mensagem da obra de Kafka, do início do século 20, antecipou os procedimentos do nazismo e do stalinismo: acusações gerais, sem dizer o que se acusa e sem data para terminar. Tortura. Entre nós, prática contumaz, é a expressão do nosso subdesenvolvimento.
Kafka nasceu em Praga, no dia 3 de julho de 1883, numa linhagem de judeus.
Doutor em Direito, tornou-se servidor público em órgão que tratava de preocupação que surgia, os acidentes de trabalho.
“O economista político Alfred Weber diz que o funcionário público corre o risco constante de considerar a vida que o aparelho burocrático lhe oferece como a vida em si”.
A fala desse douto impactou Kafka. O mundo visto a partir da repartição pública sem sequer ter consciência que o passar dos anos assim foi moldando-lhe.
O modesto avô paterno de Kafka percorreu as estradas da Boemia e da Galícia em seu mister de caixeiro viajante.
O pai de Kafka conquistou posição à frente, era comerciante, proprietário de uma loja de artigos de luxo na cidade de Praga, homem de mercado.
Kafka era alto e magro. Andarilho, percorria extensas distâncias, indo andando nas madrugadas, excedendo o limite da cidade.
Aquela família judaica resignou-se com
escolha do filho em se dedicar ao serviço público, não obstante a limitação financeira: o suficiente aos gastos correntes.
Kafka, a despeito de reclamar a dissipação de seu tempo na obrigação de cumprir expediente, das 8 às 14 horas, exerceu seu ofício de Consultor Jurídico no seu irrevogável modo perfeccionista.
Tornou-se essencial em sua repartição. Foi fundo. Seus escritos sobre acidente de trabalho são estruturados e avançados.
E aqui avultam os dois traços que constituem Kafka: o perfeccionismo, consubstanciado na profundidade e na precisão em tudo que vivia; e mais importante ainda: ter claro seus desejos, com os quais não transigia: buscava intransigentemente sua efetivação. E o desejo que lhe presidia era o de ser escritor, o foco de sua existência.
E para tanto era corajoso: “a autoanálise de Freud, que soa curiosamente inofensiva comparada a de Kafka, ilustra bem isso”.
Se é-me permitido, meu caríssimo escritor, pontuar esse seu comentário, diria que Freud e Kafka viviam realidades tão distintas que a comparação não é de tanto significado, a começar que a autoanálise de Sigmund Freud, o elegante mago sedutor, sempre foi destinada à publicação. Era um homem público expondo-se.
Voltando a sua condição de servidor público: nessa lida ele despertou para a sua obra: viu de perto a burocracia, viu julgamentos, viu pessoas, viu esperas. Não que ele haurisse sua obra daquele espaço pois sua obra é universal, mas foi um despertar.
E mais: “não conheceu os tormentos de uma vida totalmente dedicada ao ato de escrever”.
Kafka não casou, não teve filhos. Foi noivo duas vezes. Transitava à vontade nas tabernas, jogou partidas de dama com as profissionais do amor.
À sua noiva Felice Bauer, judia moradora de Berlim, escreveu quinhentas e onze cartas: prodigiosa obsessão; cartas resgatadas pelo autor do livro, primorosas, peças de destaque da língua alemã.
Felice, essa sim, sofreu com suas manifestas idiossincrasias, nela projetadas.
Ao pai, com quem mantinha relações rasas, cujas expectativas em relação ao filho não se cumpriram, escreveu as hoje célebres “Cartas ao pai”, outra joia rara da língua alemã, e declarou: “minha obra escrevi para você”.
“Um homem tem obrigação de estar atento”, refrão de Kafka seguido à risca em seus diversos graus de relacionamento, contrastando com ladainha oposta: “ele é desligado”, justificativa à conduta egoísta travestida de charmosa.
Seres como Kafka vivem epifanias; alcançam, às custas sabe-se lá de que, elevar-se, viver mais existencialmente do que cotidianamente. E daí produzem obra radical que nos revela enquanto pessoa e enquanto coletivo.
Sem esses seres excepcionais, em suas variadas atuações, em seus variados campos, seríamos mais pobres, mais limitados, desfalcado das asas que hoje dispomos, estagnados, seríamos de outra natureza. Eles elevaram nossa condição humana. São luzes.
Kafka teve ao seu lado um amigo que lhe foi um anjo: Max Brod, seu primeiro entusiasta, o primeiro a nele acreditar, a insistir, sabia-lhe gênio. Salvou-lhe a obra contrariando suas disposições testamentárias de destruí-la.
O livro contém meia dúzia de fotos em preto e branco. A família de Hermann Kafka, o patriarca de paletó, bigodão, barrigudo, sorrindo ao lado de sua mulher; o lar, nossa primeira acolhida, o quarto, a sala, os pais provedores, a infância, os irmãos, a proteção.
Kafka contraiu tuberculose e faleceu, aos quarenta anos de sua vida, em 1924, quando não existia o milagre do antibiótico, hóstia consagrada. Sua obra ainda estava na sombra. Não lhe soube o destino.
Seu pai e sua mãe faleceram naturalmente, antes do macabro holocausto.
Suas duas irmãs foram assassinadas pelos alemães, cruelmente, depois de conhecerem a fome e o desespero.
