Meu Pai, Martins Filho e Herr Görgen; Por Augustino Chaves

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O alemão Herr Herman
Görgen veio a Fortaleza a convite da UFC, nos idos de 1961. Deputado federal na Alemanha, era-lhe atribuído relações culturais com o Brasil.

Capítulos antes, católico engajado na resistência contra o nazismo, salvou-se, por um triz, da cruel perseguição da SS, forçado a deixar o sagrado espaço da Igreja, seu último refúgio. Embarcou no navio que, nas incertezas da guerra, cruzou o Atlântico.

Chegou ao Brasil, onde viveu em Juiz de Fora, Minas Gerais, na amplitude do Brasil.

Agora na plena paz dos novos tempos, na condição de deputado, respirava calmo naquela Fortaleza dos anos 60.

Final de tarde, sol descendo, levaram-no a um passeio à Praça do Ferreira.

A surpresa deu-se quando um estudante de Direito, jovem de 21 anos, a ele se dirigiu: “Ich kann deutsch” (Eu falo alemão). Herr Hermann Görgen perguntou-lhe se ele sabia quem era Goethe. Levantou a bola para aquele rapaz que, no ato, declamou versos do mito alemão. Precisava de mais? Pacto selado: ele estava agora destinado a ser o primeiro estudante da UFC contemplado com uma das três bolsas do DAAD para na Alemanha estudar.

Martins Filho, então Reitor da UFC, anfitrião do Herr Herman passou-lhe o nome dos três estudantes que iriam ganhar a bolsa. E foi tomado de surpresa quando o alemão comunicou-lhe que o primeiro dos três nomes já havia sido por ele mesmo escolhido: um estudante de Direito, fluente na língua germânica.

O estudante de Direito, chamado ao prédio da Reitoria, viu-se à frente daquela avultada figura do Magnífico Reitor, tentando lhe persuadir: em seguida à sua colação de grau receberia o presente de se tornar Professor da Faculdade de Direito. Proposta recusada. Surgiu então a lendária energia coercitiva de Martins Filho, em voz alteada. O estudante retirou-se.

Há um breve capítulo em seu livro “O outro lado da história” intitulado “Viagem à Alemanha”, onde Martins Filho narra seus dias de visita àquelas terras teutas. Naturalmente esteve com os três estudantes que lá viviam. Martins Filho registra o nome dos dois estudantes que ele mesmo havia escolhido. Omite o nome do estudante de Direito, escolhido pelo alemão. Entretanto, refere-se a “meu tradutor”. Sabia escolher….

O estudante de Direito de então não se tornou Professor de Direito da UFC. Fez-se Professor de Antropologia da UFC. Escreveu livro. Estudou no Museu Nacional. O auditório do Curso de Ciências Sociais é-lhe uma homenagem: tem seu nome. Recebeu, em memória, o título de Professor Emérito da UFC. Luís de Gonzaga Mendes Chaves.

O estudante é meu pai. Quero deixar claro que sou admirador do Magnífico Martins Filho.

Com ele conversei uma única vez, cerca de uma hora, em seu Gabinete na Reitoria, acho que em 1998.

De 1993 a 1996 exerci o ofício de juiz federal em Teresina. Aqui e ali chegavam-me casos da Universidade Federal do Piauí. Saltava aos olhos o grau incompatível de interferência da política-partidária naquela instituição, tão diferente do que acontece no Ceará com a nossa UFC. Essa foi uma das marcas da altivez de Martins Filho: deixou a UFC quase que imune a interferências circunstanciais.

Vou trazer aqui duas situações narradas por ele mês o em seu mencionado livro.

A primeira situação: um desentendimento entre ele e o saudoso Professor Paulo Bonavides, a estrela inconteste de nossa Faculdade de Direito. No livro, ele situa o contexto e, na medida, retrata-se.

A segunda situação: a avalanche de acusações que sofreu, na mídia nacional, quando cotado para ser Ministro da Educação, de que seu diploma de Direito, ao que parece oriundo de um curso superior não ortodoxo, no Estado do Piauí da década de 30, não seria verdadeiro. Saiu-se bem. Sempre sabia se sair bem.

Não ia tocar no assunto, entretanto, em nossa conversa, ele deu a deixa: “você já leu meu livro?”. Sim, gostei, mas me chamou a atenção, no capítulo “Viagem à Alemanha” a omissão ao nome do meu pai, que aparece como “meu tradutor”. E aqui, meus caros, o conhecido quadro: o filho, anos depois, tomando satisfação. Ele foi sereno e respondeu: foi uma falta, você tem razão. Não passou recibo de tanto tempo depois fazer valer aquele ressentimento sem importância, de a escolha não haver sido sua. Continuou elegante comigo, continuou esbanjando charme, do alto de seus 90 anos. Figura extraordinária.

Martins Filho, no último capítulo de seu livro, registra a duradoura amizade que estabeleceu com os pais dos dois outros estudantes. Mas sua escolha ultrapassa essa amizade. Sabia escolher. Mais uma vez acertou: duas pessoas excepcionais, dois profissionais de alto nível.

Assim, aqueles três estudantes, trio de ouro, Luís de Gonzaga Chaves, Hélio Guedes Barros e Alexandre Thomé de Saboya, amigos, afiados, deram bom início a uma importante relação entre a UFC e as universidades alemãs.

Na entrega do título, em memória, de Professor Emérito a Luís de Gonzaga, os dois, Hélio e Thomé, eram presenças históricas.

Herr Hermann Görgen é padrinho de batismo da Mônica, minha irmã nascida na Alemanha.

Depois, as três vezes que a Fortaleza retornou, nos visitou lá em casa. Essa visita a nossa casa integrava o núcleo de sua viagem. Elegantíssimo. Empático. A primeira vez eu não lembro: tinha dois anos de idade, soube depois através das fotos; na segunda vez tinha nove anos. Ele presenteou a mim e a Mônica com marcos alemães. Na terceira vez, papai já não estava entre nós. Eu vivia as dúvidas dos quinze anos. Ele me deu outro presente: falou que eu, sendo filho de quem sou, seria um grande profissional. Sabia do valor mágico das palavras. Acho mesmo que foi lá em casa me assegurar que acredita em mim. Como não lembrar esse senhor alemão?

A esses dois bravos senhores, inspiradores, Martins Filho e Hermann Görgen, de outra geração, de onde estiverem, do outro lado do tempo, recebam meus melhores cumprimentos.

Augustino Chaves é escritor e juíz federal.

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