“Os militares contam demais com a força. Os políticos contam demais com a habilidade”, Michel Tournier
A notícia vem da Inglaterra. Um súdito do Rei Charles comprou uma ilhota nas cercanias de uma outra maior, Seychelles, lugar ideal para uma “offshore” brasileira no ultramar. A ilha adquirida não tem sequer um banco, mas tem um feliz proprietario.
Em entrevista, ele anuncia a operação e revela a intenção de fixar residência nas beiradas do mar do Norte. Com sorte, haverá de encontrar um “bunker” da “Defesa da Europa, sobrevivente do dia D.
Já me ocorrera essa ideia de estabelecer-me em um porto marítimo, livre de piratas e de colonizadores desempregados, em paragens distantes das rotas das navegações.
Consultei alguns amigos: uns aderiram alegremente ao empreendimento, outros fizeram ar de espanto: “É pra começar do zero? Quero o quê, cara”, veio de pronto a primeira detecção.
Não me importei, Edson Nunes conjecturou sem entusiasmo, prometeu dar resposta depois. Hélio Barros, feito avô, com a minha comadre Maria Dulce, senhora de longas navegações e velejamentos diplomáticos, demonstraram, com a discrição educada de compadres, suas hesitações. Reclamei a adesão de outros insulares em perspectiva. “Não, não há o programa de “meu barco, minha vida, Cada um vai de remo privado”, adverti os mais interessados. Minchou.
As medidas estruturais a serem adotadas exigirão prudência. Imaginei pôr na ilha não mais que dez pessoas. Lotação fechada. Gente boa, de todas as extrações econômicas, de cor e de gênero, um rico, um “classe-media”típico e um pobre de grana, mas não de espírito. Uma burguesinha fresca e uma mocinha “woke” de narizinho arrebitado e frondosos pelos epistemológicos caindo em madeixas magníficas… Um intelectual de formação frankfurteana, com ares de etimologista sênior.
Não pude escapar a um registro memorável. Michel Tournier apropria-se de Robinson Crusoé, arrancado de um romance de Daniel Defoe, posto em uma ilha aparentemente deserta. Dias depois de desembarcado, o náufrago encontra um índio perdido, como ele “, na pequena vastidão da Ilha. O livro tem por título “Vendredi ou la Vie Sauvage”. Ao recém-chegado Robinson dá o nome de Vendredi.
A súbita e inesperada relação decorrente do encontro e da convivência iniciada estabelece uma imediata submissão de poder/mando e obediência. Assim me esforcei para esclarecer dúvidas, no meu magistério de ciência política, de jovens alunos, curiosos, cheios de vivacidade. Avancei na exploração dos conceitos de poder e influência, coerção, proteção e lealdade, “bras-dessus-bras-dessous” com Max Weber…
Considerei alguns nomes. Como não adotaríamos instrumentos coercitivos (religião e leis, mandados e exercitos) não teríamos leis, juristas, juízes nem advogado. Nem militares, nem clérigos, nem governantes, teríamos um único “coletivo”, espécie de conselho “não-remunerado” (não haveria dinheiro na Ilha).
Teríamos um Pagador de Promessas gestor de coisas e obtemperações devidas à população, micro-povo, finito sem possibilidades de crescimento. A Ilha pela idade dos seus habitantes seria infértil. Demografia estável, a não ser pelo inevitável da morte, a seu tempo.
Precisaríamos de um cientista, dito político, para preleções sobre questões plausíveis a respeito do comportamento dos indivíduos, dos outros nove habitantes, sem regulações jurídicas abusivas, bem entendido. Nesta confluência de saberes consentidos estaria certamente a cômodo Filomeno Moraes, não o constitucionalista de reconhecido talento, mas o politicólogo astuto e fértil de ideias e de nobres intenções.
E os penduricalhos, que todo governo os tem? Por ser ínfima em extensão territorial, como assentar nessa terra pródiga — uma multinacional? Era preciso estar preparado para o futuro anunciado… Nunca se sabe. Um desafio a retomar mais tarde. Um nó a ser desatado pelo velho cúmplice de grandes e combativas empreitadas, Geová Sobreira, ele e eu velhos “jagunços” que somos, presos a tantas raizes para as bandas de Caririaçu e Porteiras.
Os outros seriam, todos, cidadãos e súditos remidos, em uma sociedade permissiva e indulgente, sem códigos nem penas, ou suspeitas verossímeis, um grupo cúmplice e solidário em um Estado sem governo, como nos proporíamos em boa hora construir…
Eleições, para quê, afinal? Se todos são candidatos a eleitores para os cargos que já ocupam, nada a fazer.
