Entre metáforas e utopias, as artes da palavra e o projeto de poder de Antônio Vieira, sj
Antonio Vieira era um jesuíta culto convertido a algumas utopias que suscitavam a ideia de um “Quinto Império” ou a “Quinta monarquia”, o último dos grandes Impérios conhecidos até o século XVII. Neste viés milenarista e messiânico compunha-se a visão da grandeza futura da gente portuguesa.
“E a nossa grande raça partirá em busca de uma India nova que não existe no espaço…”, Fernando Pessoa
Amigo de Dom João IV, da Casa dos Alcântaras, Bourbons e Bragança, de Portugal, tinha-o como seu admirador. Eram interlocutores regulares. A Vieira aprazia agradar o amigo e monarca e fazê-lo sentir-se admirado.
Vieira, apesar das suas frequentes travessias pelo Nordeste brasileiro que Gilberto Freyre e Djacir Menezes estudariam e lhe dariam, a seu tempo, as primeiras e engenhosas interpretações, concluíra que mais valeria a pena entregar o chão seco de uma vasta região de desolação, um vazio a preencher com gente e animais, ao holandeses, do que ocupá-lo e colonizá-lo.
Para Portugal, para os portugueses e os novos brasileiros melhor pareceria devessem ocupar-se da guerra da Restauração contra os espanhóis. Aos muçulmanos já lhes havia sido dado coça, tres séculos antes, lição longamente esperada e encerrada obsequiosamente pelo Cardeal Cisneros, em Granada.
Sobre estas intenções mal costuradas, Evaldo Cabral de Melo ocupou-se com pertinência e autoridade em livro de irrepreensível formatação histórica.
O “Quinto Império” foi uma construção que ocupou projetos audaciosos de potência e de poder, de Estados fortes e conquistadores, “impérios”, como forma apaixonante de geopolítica banhada pelos sonhos de uma utopia incurável.
O “Quinto Império” foi um mito sedutor de uma geopolítica regada pelos sonhos de uma utopia incurável
A Espanha, o México tanto quanto a Inglaterra acalentavam a ambição da conquista do mundo conhecido. Lorde Cromwell acreditava que os ingleses eram o povo eleito. Não com as luzes da Revelação de Deus, como coube, por engenhosa apropriação, aos judeus, porém como navegantes e descobridores, mercadores e soldados, tendo a soldo mercenários e esquadras, antístites e pregadores, piratas e flibusteiros, mares a dentro ou a fora.
Vieira armara-se de argumentos aliciadores e deles se valia com a autoridade de municiador de inspirações da fé e como seu intérprete para fazer acreditado o sonho de conquista a materializar-se no “Quinto Império”, português com toda a certeza e segurança das suas profecias. Desse mito, veiculado em numerosos registros e textos literários, Vieira deu forma a um sonho de regeneração de Portugal, uma forma de sebastianismo, o renascimento para a grandeza de uma nação imprensada entre a Espanha e o finistério, fora e para além do mare nostrum mediterrâneo.
Vieira dissimulava, como lembram alguns historiadores e cronistas, a lenda alimentada por um sapateiro lusitano em torno de um Daniel bíblico e inventivo que narrara um pesadelo atribuído a Nabucodonosor como anúncio premonitório da conquista do mundo pelos portugueses. Já o monge Joaquim de Flora, no mito da “Terceira Idade do Espírito Santo”, profetizara que Portugal seria o quinto e último Império Português do mundo.
O Brasil entra nessa conversa e nos doces embalos da lenda como parte do projeto que haveria de ser a sua entrada triunfal no mundo civilizado.
Estas quimeras bem adoçadas convocaria, séculos à frente, a visão romântica regada do mais puro patriotismo do Conde Afonso Celso em seu livro que, hoje, mais se parece com uma indagação curiosa e impertinente ao contrário de uma assertiva de reconhecimento e afirmação: “Por que me ufano do meu país?”…
Quinhentos e vinte e quatro anos decorridos, desde aquele atropelo da perda da rota de navegação de Cabral, tentamos de tudo à procura de uma saída honrosa deste proverbial “berço esplêndido” metafórico.
Somos vezeiros a cometer os mesmo erros e tentar corrigi-los com as mesmas soluções
Volta e meia, refazemos o mesmo alento de fuga, sempre a cometer, contudo, os mesmos erros e a mesma impertinente autocomiseração ancestral.
Se o “Quinto Império”, obra de audaciosos navegantes lusitanos anunciaria — o Brasil a reboque — tantas glórias entrevistas, não foi dado comprovar.
Se para Vieira foram, entretanto, estes propósitos acalentadas muito mais do que uma metáfora ou uma utopia bem agenciada, não sabemos. Talvez fosse uma estratégia, tratada com os mesmos cuidados que os jesuítas dispensavam ao apresamento das almas dos autóctones, convocados à fé católica.
Andamos a guerrear pelas redondezas, convencidos de que o nosso braço forte não foge à luta, sem esquecer, entretanto, que somos por índole e natureza um povo pacífico, como, aliás, o Itamaraty não se cansa de reiterar.
Mostramo-nos, em terras da Itália, com o nosso lado heróico e combativo, ao enfrentarmos o nazi-fascismo. Veio o Estado Novo, seguido de breve recesso autoritário. Os ventos da democracia sopravam fortemente sobre os heróis de Monte Castelo e traziam o silêncio dos mortos e os anseios dos sobreviventes de volta ao seu lugar. Vargas e os tenentes já envelhecidos pelo tempo e pelas vicissitudes da política não resistiram à pressão das novas circunstâncias das liberdades restauradas.
Em pouco mais de duas décadas, assistiríamos, entretanto, a uma recaída totalitária de longa duração. As armas e as velhas oligarquias uniram forças, a subversão corroía os valores da família brasileira e os riscos pressentidos que, de tão ameaçadores, infundiam presságios e inquietantes suspeitas de um futuro posto sobre ameaça.
“Leis são como salsichas; é melhor não saber como elas são feitas”, Otto von Bismarck
Vinte e cinco anos de controles e de restrições da opinião e da liberdade formaram os custos operacionais das severas perdas sofridas pelos nossos amortecidos ideais democráticos.
Empenhados em uma lenta recuperação, recobrávamos o nosso amor próprio quando novos ventos de um sedutor neoconstitucionalismo, técnica específica de limitar o poder” [Gomes Canotilho] nos conduziu ao juridicismo autoritário que intenciona nos governar ao amparo de leis e de despachos declaratórios, por vezes assustadoramente interlocutórios”… Não basta que leis sejam criadas, cumpre conhecer como elas são feitas, a exemplo da receita dos embutidos a que se referia Otto von Bismarck.
Desde que os últimos restos do absolutismo foram varridos deste planeta solitário, com o advento dos Estados nacionais, o povo, metáfora nascida com a Revolução Francesa, foi parte da estrutura do governo e dela participou sob formas variadas de representação constituída.
É verdade que as ideologias e as imposições da pecúnia impuseram duros resguardos aos excessos de liberdade, com o fortalecimento dos instrumentos de governo e do poder da coerção exercido pelo Estado ou por diligentes atores políticos em seu nome.
O fundamentalismo religioso e as versões múltiplas de totalitarismo e de dogmas consolidaram sistemas de governo e regimes autoritários que ganharam denominações adjetivas significativas: comunismo, socialismo e fascismo, uma amálgama de teorias e ortodoxias fundadas na força da autoridade e nas precedências da hierarquia.
Não falta, entretanto, quem anseie por este “Quinto Império”, no qual se fundirão a Vontade, o “novo homem” anunciado e o advento de um “brave new world” na visão distópica de Aldous Huxley…
Referências
Alexandre Maduco – História e Quinto Império em António Vieira, Topoi, v. 6, n. 11, Lisboa 2005
António Valdemar – Sonho Mítico do Quinto Império, Diario de Noticias, 27/01/2005, Lisboa
Djacir Menezes – O Outro Nordeste, Livraria Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1937
Evaldo Cabral de Mello – O Negócio do Brasil, Companhia de Bolso, Rio de Janeiro, 1998
Fernando Pessoa – O Quinto Império, in Mensagem, Lisboa
______________ — Portugal, Sebastianismo e Quinto Império, Europa-América, Lisboa, 1988
Fernando Cabral Martins – Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo, Caminho, Lisboa, 2008
Gilberto Freyre – Nordeste, Livraria Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1937
Joaquim Ruivo – O Quinto Império, Leiria, 2013
José Joaquim Gomes Canotilho – Direito Constitucional e teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2000
Luiz de Camões – Os Lusíadas
Victor Nojosa de Oliveira – António Vieira: A utopia do Quinto Império, Dialética, 2024