O poder estatal deve ser exercido na busca do equilíbrio entre a proteção e a restrição das liberdades individuais. A polícia, por exemplo, corporifica a mão forte muitas vezes necessária para manter a ordem pública, mas, frequentemente, tem se mostrado um punho fechado a agredir o cidadão. Na busca de coibir o crime, pode vir a ser truculenta e agressiva contra quem deveria proteger. A história da civilização nos ensina, com a insistência de um professor paciente, que o detentor do poder tende a dele abusar. Diante desse inevitável abuso, Montesquieu desenvolveu a ideia de que o poder estatal precisa ser contido pelo próprio Estado, através de sua divisão de tal forma que uma parte controle e ao mesmo tempo seja controlada pelas demais.
Assim, toda investida estatal contra a liberdade – mesmo quando disfarçada de zelo fiscal – deve ser limitada. Na busca de mais arrecadar o Estado inclina-se ao excesso, o que exige normas claras e firmes que freiem sua ânsia tributária, não deixando margem para abusos.
É essa a razão de a atividade do fisco dever estrita obediência à lei, conforme determina a Constituição Federal no capítulo que trata das limitações ao poder de tributar. Todavia, a prática mostra constantes e fortes agressões ao direito do cidadão tanto na quantificação como na forma de cobrança dos tributos, evidenciando que a garantia de que haverá a obediência do fisco aos ditames da lei ainda é peça de retórica.
Há bastante tempo os contribuintes têm pedido socorro ao Judiciário. O Supremo Tribunal Federal, ainda em 1969, editou súmula estabelecendo que não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais. Deste então o STF tem repelido autoritárias medidas de cobrança e em outubro de 2015 proferiu decisão com repercussão geral, vinculando todo o Poder Judiciário, na qual repete que é inconstitucional restrição imposta pelo Estado ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quanto aquelas forem utilizadas como meio de cobrança indireta de tributos (ARE 914045-RG).
A mensagem é clara: a cobrança do tributo devido deve ser feita pelos meios legais que permitam a extração de parcela do patrimônio do contribuinte devedor para quitação da dívida, os quais já muito privilegiam a Fazenda Pública, e nunca com o impedimento do livre exercício da atividade econômica, atitude agressiva que viola a Constituição e é chamada de sanção política.
Apesar da posição firme dos tribunais, o fisco segue renitente no uso da sanção política, por vezes como estratégia velada outras de forma aberta. Para o Estado fiscal não basta cobrar multa e juros. É preciso sufocar economicamente os inadimplentes, colocando a sola do coturno no pescoço daquele de quem exige uma prestação.
Exemplo dessa insistência está nos diversos projetos de lei enviados ao Congresso com a previsão da figura do devedor contumaz, que surge da diferenciação entre inadimplentes, separando dos demais aqueles que seriam prejudiciais à concorrência e a competitividade da economia brasileira. O devedor contumaz é punido com a suspensão do CNPJ, até o pagamento. Tais inadimplentes são considerados inimigos do povo e proibidos de existir (sem CNPJ), não pelo dano que tenham causado à economia, mas pela dívida que acumulam e somente enquanto não paga. A Receita Federal informa que a medida não teria objetivo arrecadatório, pois, pelas suas características, o devedor contumaz não pagará os tributos devidos. Não deixa dúvida, aquele que não pagar seus tributos e não tiver garantia patrimonial ficará impedido de funcionar. Hoje, seria a partir do limite de R$ 15.000.000,00. Amanhã, uma vez permitida, tal violenta medida certamente será estendida a valores menores.
No Ceará temos outro exemplo. A Secretaria da Fazenda editou a Instrução Normativa nº 147, de 02.12.2024, prevendo a possibilidade de o fisco rejeitar a emissão de nota fiscal eletrônica por contribuinte que deixe de recolher a diferença de alíquota de ICMS em operações interestaduais ou faça operação comercial em desacordo com a legislação tributária. Norma de inferior hierarquia cria a categoria de devedor de ICMS que fica impedido de emitir nota fiscal até que pague o tributo, e mais, traz a possibilidade de o fisco impedir a emissão de nota fiscal por aqueles que efetuem operações que venham a ser enquadradas como em desacordo com a legislação tributária. É situação infracional tão genérica que tudo pode abarcar. É apontado mais um inimigo do povo.
Para o fisco, de nada valem as limitações constitucionais ao poder de tributar e a pacífica e firme orientação do STF. Desatendendo abertamente aos ditames constitucionais e à Corte Suprema de nosso País, o Estado Fiscal perde o estofo moral para exigir o pagamento dos tributos em dia.
Não devemos ser complacentes com sonegadores de tributos. Quando existir a fraude cabe ao fisco apurá-la e punir o infrator com o rigor da lei. Multas e penas prisionais devem ser aplicadas por meio do devido processo legal.
Não podemos concordar, porém, que o fisco impeça o exercício de atividade econômica lícita como meio de cobrança de impostos, abrindo uma larga porta para o arbítrio. A Constituição Federal não permite. O Supremo não permite. A legalidade tributária não permite. A defesa das liberdades não permite!
Schubert Machado é advogado, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET e articulista do Focus Poder.