
Reza a sabedoria popular — e também as escrituras, em prosa ou em verso — que se o pão alimenta nosso corpo e nosso espírito, a padaria é o templo cotidiano onde se celebra, a cada amanhecer, o milagre da partilha. Ali, entre o calor do forno e o aroma do trigo, vivemos um ritual silencioso que nos renova e fortalece.
“Debulhar o trigo / Recolher cada bago do trigo / Forjar no trigo o milagre do pão / E se fartar de pão…” — como canta Milton Nascimento, em versos que resumem a mística de um gesto simples, ancestral e sagrado.
Nasci e me criei até os 11 anos numa casa cujo quintal fazia parede com o quintal de uma padaria. Era com o som compassado dos padeiros preparando o pão nosso de cada dia que eu adormecia. E era com o cheiro quente e vivo do pão assando que eu acordava. A vida era pontuada pelo fermento desse cotidiano.
Quando nos mudamos para Fortaleza, em 1976, nossa nova casa também era vizinha de uma padaria. O destino parecia insistir em me lembrar que pão e afeto caminham juntos — como se houvesse algo de essencial em crescer ao lado daquele espaço imaginário, de um ofício que nunca dorme.
No último dia 8, comemorou-se o Dia do Panificador, e por conta do meu trabalho, tive a alegria de participar do FestPan — uma festa animada que reuniu 650 panificadores, celebrando uma profissão essencial com alegria, bebidas, comidas e muita música. Ainda sob o impacto sensorial e afetivo dessa celebração, participei, no dia 9, na Federação das Indústrias do Ceará, do seminário “A Padaria do Futuro”, onde se discutiram os dilemas e as inovações desse setor que, além de relevante para a economia, é também vital para a alma brasileira.
Enquanto escutava a banda que animava o FestPan, voltei à infância e pensei nos padeiros que moldaram silenciosamente minha educação sentimental. Lembro das madrugadas em que, enquanto sovavam a massa, os padeiros escutavam — e às vezes cantavam — canções de Odair José, Núbia Lafaiete, Raul Seixas e Waldick Soriano. Houve uma época em que um padeiro vizinho, abandonado pela namorada, passou semanas repetindo um clássico do brega-star Bartô Galeno:
“Só lembranças… Só lembranças… De alguém que se foi e levou minha paz…”
Mais tarde, nos cinco anos que vivi em São Paulo, as padarias passaram a ser uma extensão da minha casa e do meu trabalho. Aos domingos, os cafés da manhã prolongados serviam para atualizar leituras e reencontrar os amigos. Em Perdizes, onde morei, ou nas pausas entre um expediente e outro na Paulista ou em Santa Cecília, onde trabalhei, era sempre a “padoca” que me acolhia com um café, um pão na chapa e uma atmosfera de pertencimento. Como canta Maurício Pereira na sensível “Trovoa”:
“Sozinho na padoca em Santa Cecília… No meio da tarde… Soluço, quer dizer, relembro…”
As padarias têm esse dom de acolher o que há de mais humano em nós — o cansaço, a saudade, a ressaca, a esperança. São confessionários urbanos onde dividimos o silêncio e o pão.
Essa comunhão entre o pão e o espírito nos conecta também à arte. A padaria já foi espaço de literatura e utopia. No fim do século XIX, em Fortaleza, surgiu o movimento literário Padaria Espiritual — uma reunião de artistas e escritores que buscavam “pão, arte e ideias” como forma de fermentação cultural. Anos depois, a Semana de Arte Moderna, em 1922, traria para o sudeste a mesma ideia de ruptura e renovação estética. Ambas queriam modernizar, acordar o Brasil. Ambas tinham sede de futuro. E se a Semana de 22 era vanguarda, a Padaria Espiritual já nos alimentava antes com o cheiro bom de ideias novas saindo do forno.
Quando Ednardo canta “Artigo 26”, uma referência à Padaria Espiritual, nos lembra que, ao entregar o pão de casa em casa, o padeiro, como todo artista, tem de ir aonde o povo está. E onde o povo está? Está na feira, na rua, em casa… e na padaria. Porque é ali, entre um café e um pão doce, que a vida cotidiana se reinventa.
O cinema também soube celebrar as padarias como lugares de encontro e transformação. Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, a heroína frequenta padarias parisienses como quem busca poesia em cada croissant. Em Pão e Tulipas, de Silvio Soldini, é numa padaria que a protagonista reencontra o sabor da vida.
A literatura também é rica em referências. A Padaria Espiritual nasceu no Café Java, reaberto recentemente, na Praça do Ferreira, em Fortaleza, e reuniu nomes como Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Adolfo Caminha e outros tantos nomes de ruas de nossa cidade. O grupo se autodenominava “padeiros” e buscava fornecer “pão do espírito” aos seus membros e ao público em geral por meio do jornal “O Pão”. Já em tantos romances de Jorge Amado, é o cheiro do pão e do café que abre o dia e aquece os lares de seus personagens.
Ao final, compreendo que as padarias não são apenas comércios de bairro: são instituições de memória afetiva, política do cuidado e espiritualidade laica. Nutrem nosso corpo, mas sobretudo alimentam o espírito. Ali, entre fornadas e conversas, lembranças e projetos, nos encontramos com o que há de mais essencial: a partilha.
Porque, no fim das contas, padarias são um tipo de templo. Onde o pão é sagrado, e o afeto, fermentado.
