A cruz de madeira pendendo sobre o peito, e a medalhinha complementando o conjunto, despertaram minha curiosidade sobre aquele senhor. Pela primeira vez, estava eu diante de um Camiliano.
Não, não existe relação alguma entre os Camilianos e o escritor português Camilo Castelo Branco, como julguei de imediato, criando uma analogia inexistente, e me penitencio pelo desconhecimento.
Aos que não sabem do que se trata, como eu também não sabia, Camilianos são os seguidores de São Camilo de Léllis, o padroeiro dos enfermos e moribundos, dos que sofrem e dos que estão prestes a morrer (“Ave Caesar, morituri te salutant” –cumprimentavam os gladiadores a seu Imperador).
Das ações de Camilo de Léllis, e de alguns companheiros, nasceu a Ordem dos Ministros dos Enfermos. Composta por criaturas especiais, espiritualmente vocacionadas, prestavam atendimento ao saldo sangrento das batalhas entre turcos e venezianos, independente de qual fosse o lado bélico dos feridos. Estendiam o atendimento a quem mais carecesse de ajuda para cura – público que devia ser imenso, na Itália medieval.
Nenhuma semelhança com a paisagem que nos cerca enquanto conversamos, aquele senhor com a cruz de madeira sobre o peito, e eu.
Há entre nós um portão de metal, guardando a entrada do condomínio onde ele se ocupa na função de porteiro. Conversamos por entre as grades do portão, protegidos do sol do meio dia, que incendia as areias daquele trecho residencial ocupado por condomínios de casas erguidas sobre dunas.
Através do espaço entre as grades, transfiro para as mãos dele um volume de material impresso. Ele recebe cauteloso, qual fôssemos espiões trocando senhas, parados sobre uma ponte de fronteira, e repete em voz alta as informações que dou sobre a entrega do material a um morador do condomínio. Aproveito para novas perguntas.
O que quero saber dele é a razão de haver aderido à Ordem Camiliana. Sou informada que as bem-vindas visitas recebidas pela mãe dele, enquanto se encontrava enferma, inspiraram o desejo de também auxiliar a outros. O que levou ao preparo e à qualificação para receber a cruz de madeira sobre o peito –, versão reduzida das cruzes vermelhas de pano, costuradas no peito e nas costas das vestes de monge que identificavam os Camilianos durante as guerras intermináveis. Segundo consta, mas não garanto, teria sido essa a fonte de inspiração para ser criado o emblema da Cruz Vermelha.
O vento varre o calçamento entre os portões dos sucessivos condomínios da rua. A areia range sob minhas sandálias. Há um cheiro marinho vindo de um Oceano que não se avista. Difícil, para mim, de pé entre o carro estacionado na calçada e as grades do portão fechado, entender o destemor de quem age dessa maneira desprendida. De quem exercita na prática a misericórdia bíblica. De quem trata dos enfermos sem a rejeição (que me parece natural) de lidar com o sofrimento alheio.
Pondo-se de lado médicos, enfermeiros, atendentes, pessoas com formação profissional direcionada a enfrentar essa realidade, surpreende que exista quem não fuja da proximidade com um corpo humano devastado por um mal grave, quem não recue diante de uma escara profunda, quem suporte nos braços o triste invólucro de carne que somos.
Camilo de Léllis padecia com uma chaga incurável no pé, o que pode ter levado à identificação dele com os sofredores. Esse homem à minha frente, a quem olho com outros olhos, foi motivado apenas por um exemplo particular, fazendo disso um motivo de vida.
Louvo a coragem desse porteiro, a quem o colega São Pedro certamente vai receber, daqui a muito tempo, com a felicidade de poder repartir com ele as chaves de um mundo melhor.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.