Onde dorme a nossa história . Por Angela Barros Leal

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Defendo para mim mesma a teoria que todos nós, os nordestinos nascidos e criados na cidade, ou seja, na Capital, mesmo aqueles dentre nós que amam o ruído das buzinas e freios dos veículos, os que se encantam com a mudança de cores dos semáforos, os que apreciam em silêncio o negro luzir do asfalto, temos, tem algum ponto da dupla hélice do nosso DNA, um minúsculo elemento genético, um fragmento de memória que nos remete de volta às serras, ou aos sertões. 

Das serras, pressinto a presença delas pelas conversas antigas de meu pai, um orgulhoso serrano de Baturité. Graça nenhuma encontrava ele no mar: É só esse vai e vem – reclamava, movendo a mão em idas e vindas, talvez desagradado com a casa que lhe fora doada para morar, a dois quarteirões da praia. 

Na serra tudo é muito mais bonito – garantia ele, enquanto observava minha mãe colar, no vidro transparente do quadro de luz, embutido no terraço da frente da casa, a ilustração de um castelo em meio ao esplendor verde de uma montanha europeia. Na serra o ar era frio e a vida era calma. O dia mais longo. A água mais pura.

Nós, os filhos, discordávamos, é natural. Vivíamos embriagados pelo cheiro da maresia, os cabelos endurecidos pelo sal, os pés saltitando no calor das areias, os corpos marcados em duas cores, bicolorizados pelo desenho do maiô, do calção, do biquini, perfumados pelas receitas esdrúxulas da alquimia que unia óleo Jonhson a Coca-Cola.

Mas no pêndulo dos desejos, era o sertão, do qual viera nosso avô materno, a quem acompanhávamos em viagens à fazenda Califórnia, era o sertão dos açudes lodosos, da sensação de ter a lama esguichando entre nossos dedos dos pés, ao tocar o fundo dos açudes, era o sertão do leite espumoso, tirado na hora do ubre das vacas, era o sertão com cheiro de chuva e de estrume, era o sertão que nos parecia mais perto do que a serra. 

Ainda hoje, é o sertão que faz acionar na minha mente um sininho ancestral, quando leio uma frase como: “Rodopiar o animal na rapidez de um raio, com a mão direita no garrote e a esquerda na crina, suspender o animal para trás e, em um pulo, atingir a rês pela cauda.”

É ativado um resquício de tempos passados, ao ler o seguinte parágrafo: “Aquilo em nada se assemelhava às piscinas de águas límpidas, ao mar do Rio de Janeiro. As paredes banhadas de lodo guardavam aparência de pântano. Na água verde-escura moviam-se pedaços cortantes de cipós. Havia ainda o bando de rãs a se divertirem, saltando de um lado para o outro”.

É inevitável sentir o cheiro do mato e perceber o agudo reluzir do sol ao conferir uma passagem assim: “O avô, tentando fazer a visita assumir um tom ainda mais cheio de emoção, foi dizendo – isso aqui, minha filha, foi construído por escravos e terminado em 1794. A areia foi toda trazida do rio Jaguaribe, 35 quilômetros daqui. Nada menos que por 115 escravos. Vá se preparando para escutar casos de gente desse e do outro mundo. E sorrindo, complementou – sua história também dorme aqui”.

Nas descrições, há uma verossimilhança que me empurra de volta a um sertão que nunca vivi. Não apenas isso. Há um fio invisível que me impulsiona a um sertão do qual testemunhei nada mais que meros pedaços. Por um fim de semana. Por uma semana, durante as férias escolares. Por uma história sem compromissos, ouvida de um avô, de uma avó.

Esse passado desabou sobre mim a partir a de um livro que li há pouco: Sangue no olho d´água, autobiografia ficcionalizada sobre a infância da autora, Glória Diógenes, em uma terra que seria em parte encoberta pelas águas do açude Castanhão. Encoberta, porém jamais esquecida. Uma terra de espinhos, de vinganças, de doçuras escassas.

“Sempre houve sertão, riacho, cheiro de esterco, mugido de vacas, rastro de cobras, temor dos guaxinins, duelo de pistoleiros, rezadeiras, veredas e matas não brocadas no roçado de palavras”. E continua: “Sertão sou eu” –, como assegura a autora –, “em qualquer lugar”, parafraseando talvez a propósito a frase de Guimarães Rosa: “Eu carrego o sertão dentro de mim”. 

Têm razão, os dois. Tinha razão, o avô. O sertão permanece dentro de nós, e é lá que dorme a nossa história.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

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