
[Confissões recolhidas de um politicólogo curioso sobre temas e exercícios de política, abandonados por prudência e uma certa exaustão de pesquisador preguiçoso.]
Andei, há tempos, seduzido pelo estudo das fontes e do processo que fazem do poder no Estado uma força ponderável na vida das pessoas.
Agucei a curiosidade para estudar e conhecer melhor como se formavam as fontes da influência nas Organizações.
Segui, naturalmente, os passos de Max Weber, na tentativa de conhecer e deslindar alguns nexos sugeridos por uma “sociologia das organizações, instrumento weberiano empregado para fixar a amplitude dos espaços ocupados pela burocracia, no âmbito do Estado, mas também no micro- universo da organizações.
Para Weber, a burocracia é “uma forma prescritiva para delegar responsabilidades e padronizar a comunicação”. [“Economía y Sociedad”, Fondo de Cultura Económica, México, 1944].
Nas organizações sociais — as grandes corporações, as organizações, e até empresas com destinação social ou econômica — , a criação de um ambiente propício à sua missão e aos seus negócios e empreendimentos, ainda que traduzissem compromisso altruístico, alcançam a definição de um marco regulatório sob o controle de uma cultura burocrática própria.
O Vaticano, conquanto se houvesse de respeitar a sua singularidade, por tratar-se de uma organização para a consolidação e a propagação da Fé, nem por isso haveria de perder a característica de organização gerida por uma burocracia própria, eminente.
É neste cenário que haveriam de ser estudadas as relações internas de poder, mando e obediência. Cuida Henry Mintzberg que a formação de “grupos de interesse” dentro de uma organização subverte “a ordem burocrática” e “cria núcleos de poder” que alteram a hierarquia e as precedências no plano das decisões. [Henri Mintzeberg — Entendendo as Organizações, Bookman, São Paulo, 2023]. Por esses desvios da vontade e da persuasão consolidam-se fortes convergências e as dissidências que unem e separam. Os “príncipes da Igreja não escaparam a essa sedução.
Retomemos, porém. o fio da conversa que de Jesus nos afastamos.
De quais “recursos políticos”, careceria um cardeal para tornar-se papa? De que instrumentos serve-se a Cúria Romana, na rotina das suas decisões, para eleger um papa e vigiar os seus passos a fim de que não fuja aos seus controles ?
Pode-se falar, dos moldes como se organizou o Partido Comunista, mundo afora, quando era ainda, de fato, comunista, e aplicá-los à estrutura de poder vaticana? Assim: existe um “coletivo” de cardeais formado pelas suas convergência teológicas e ideológicas? A disciplina, a hierarquia e a adesão incondicionais às regras do partido explicam, entretanto, porque a sua estrutura organizacional tanto se assemelha à organização militar (a “Companhia de Jesus” espelha estes rigores).
O partido, tanto quanto a “Companhia” exibem uma forte couraça ideológica, teológica e dogmática, proteção de que se armaram para o apresamento das almas recalcitrantes das criaturas de boa fé.
No campo da fé e da religião, caberia a Paulo de Tarso a extraordinária capacidade de mensageiro e agente das verdades da Revelação. À “Companhia”, armada de excepcionais poderes intelectuais e das regras dos exercícios espirituais de Loyola, incumbiria o trabalho sistemático da catequese e da defesa das construções do catolicismo. Paulo e Loyola são a expressão mais forte da instrumentação da força dessa formidável instância da fé — a Igreja.
Em outras palavras, ao gosto dos cientistas políticos “pós-weberianos”, é possível falar de um “núcleo decisório duro” no interior dessa enorme amálgama de virtudes, sobeja e orgulho dissimulados ?
Poder-se-ia suscitar a natureza de um “sistema político” no qual se fundissem regras e preceitos, conceitos e preconceitos compartilhados por estas criaturas do governo das coisas de Deus?
Diz-se que nenhum cardeal confessa, até mesmo na intimidade mais recolhida, pretender tornar-se papa. Tem-se esse virtuoso desprendimento como pré-condição presuntiva, aos olhos dos “eleitores” e do Espírito Santo, para tornar-se algum aspirante dissimulado candidato “in pectore” à cátedra de Pedro. Por que essa renúncia ao mais conspícuo cargo da Curul pontifícia tornar-se-ia, na prática, virtude e santidade prévia quando de fato a elevada distinção só parece ser rejeitada por alguns velhos senhores em idade de sereno recolhimento às suas virtudes?
Na conta das trivialidades que as longas esperas pela fumaça negra anima, o que se dizem entre si e conversam essas criaturas no aguardo da inspiração esclarecedora da sua vocação ?
Quais os juízos de maior peso entre os cardeais votantes — os preceitos emanados da Escola de Frankfurt ou as pontuações da “Rerum Novarum” de Leão XIII? Os “textos do Cárcere”, de Gramsci, ou as homilias de João XXIII? O que pensam essas gentis criaturas do “Foro de São Paulo” ?
Como se faz um “papabili”, de um cardeal vindo de tantos lugares, até mesmo do “fim-do-mundo” metafórico de Bergoglio, Francisco? Que mudanças dissimuladas, porém significativas, “et pour cause”, teriam ocorrido, nestes anos recentes, nas cabeças iluminadas dos membros do Consistório ?
Uma indagação que não cala. Como se faz um cardeal? Quais as virtudes e os méritos teologais, além da caridade, virtude um tanto quanto fora de moda, podem transformar o pároco da aldeia, o monge discreto apagado pelas suas reflexões em um papa?
Na Assembleia Francesa, pelos tempos do Diretório e do Terror, o “hemicírculo” era formado pela Nobreza (278 deputados), pelo Clero (295)e pelo Terceiro Estado (604). Ali se misturavam os aristocratas, os patriotas radicais , os patriotas moderados e os monarquistas… Jacobinos, girondinos e sans-culottes…As metáforas “esquerda”, “direita” e “centro”, antes de envergarem conotação político-ideológica, não passavam de uma figura geométrica que espelhava a distribuição dos partidos pelos assentos do Plenário… Aos poucos, as suas afinidades eletivas abriram-lhe espaço e proximidade.
Nos Consistórios, a discrição dos prelados-eleitores e a conveniência desses antístites tornam a escolha do papa um ato de fé que poucos rompiam,a sua discrição, ainda que o fizessem por mera curiosidade ou pela fragilidade das suas intenções.
Que poderes exercita, afinal, o papa, além da precedência na confrontação com as dissidências dissimiladas, as pequenas ruminações de vaidade e discreta sublevação? Acordos são costurados e negociados, na base do “toma lá, dá cá”? Ou para esses tratos humanos, demasiadamente humanos, cunhamos razões luminosas de divina inspiração? Prelazias e paróquias podem ser criadas e multiplicadas para emprego pacificador das demandas inter-cardinalícias? E um “certo cardinale” aquele cujo nome não é declinado, até onde chega a sua real “influência” ?
De recantos obscuros da cristandade, houve vozes que justificassem a substituição da concentração desmedida de poderes nas mãos de um único “vigario de Cristo” por um mecanismo plural, um coletivo, espécie de Cúria cujas decisões se tomassem pela maioria dos seus integrantes.
A que preço a renúncia aos pecados do mundo se paga com o envolvimento com as paixões terrenas? Por que indagaria ironicamente Stálin de Pio XII sobre as “divisões” de tropas terrestres dispunha o Vaticano, se não visse as milícias papais de Deus como exércitos poderosos dotados dos engenhos da fé (ideologia, em um certo sentido) e da exegese, capazes de pôr em risco o império do Kremlin.
Essa comparação não resiste ao bom senso, tampouco à imagem que as criaturas de fé fazem das suas crenças.
Retomemos as proposições iniciais para que possam ser avaliadas na extensão verdadeira e real da Autoridade papal, além naturalmente da “Infalibilidade” das “Suas” decisões.
Este breve e pouco percuciente ensaio poderia tornar-se, se me permitem a pretensão, um estudo sobre a estrutura e distribuição do poder em uma organização sólida, com dois mil anos de marca registrada, amada e reverenciada pelos seus fiéis, em todo o Ocidente.
A estrutura de governo da Cúria Romana recobre, como na estrutura do governo do Estado moderno, as “atividades-fins” e as “atividades-meio”. Por “fins”, me apressaria em definir, embora incorrendo em erro de ignorância confessada, a “Revelação”e a “Salvação” dos homens e das mulheres de fé. Por atividade, circunstância ligada à produção dos meios, lembraria o governo e a burocracia, a organização dos processos internos, o ordenamento da hierarquia, das precedências, a ordem e a disciplina.
Da gestão dos procedimentos valeria lembrar os funções de Estado [Secreraria de Estado] e os Dicastérios. Os Organismos de Justiça, os Organismos Econômicos [e de Administração] e os Departamentos.
As “Instituições ligadas à Santa Sé” [a Casa de Deus vivo]exercem mandatos [“serviços que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade, no mundo de hoje”].
As competências pontificais parecem bem definidas e a transferência de responsabilidades e encargos demonstram seguir atos de vontade própria e aconselhamento do Pontífice.
As atribuições correspondentes aos encargos e funções delegadas e a natureza do seu exercício podem, entretanto, configurar a dimensão do poder compartilhado e a influência que possa repercutir sobre a Cúria e os seus executantes.
Numerosos documentos exarados pela Cúria, pelos Consistórios de Cardeais ou pelos Concílios de Bispos, em circunstâncias precisas, em territórios extra-muros, podem gerar competências pontuais para decisões específicas e dividir a autoridade vaticana.
Dir-se-ia que a infalibilidade do papal, um dos dogmas da Igreja, configura a “comunhão com o seu Sagrado Ministério” quando delibera em matéria de fé e moral, ‘ex cátedra’, está sempre certo, graças à “assistência sobrenatural do Espírito Santo”.
Estes exercícios de micropolítica aqui praticados não têm como propósito ou pressuposto questionar os atributos personalíssimos do Pontífice, nem qualquer dogma de fé da Casa de Deus, como se nomearia metaforicamente a Casa Vaticana.,A intenção mais ambiciosa converteu-se, por força das circunstâncias” na busca pela compreensão de como sao exercidas e eventualmente seguidas e cumpridas às imposições do poder e da autoridade conforme a Constituição Apostólica, “interna corporis”.
Referências
[“Constituição Apostolica Praedicatum Evangellium”, Papa Francisco, 19/03/ 2023]
Fischer-Wollpert, Rudolf – O Papa e o Papado, Editora Vozes, Petrópolis
Max Weber – Economia y Sociedad, Findo de Cultura de Mexico, 1944
Henry Mintzberg – Entendendo as Organizações, Bookman, 2023
