
[Confissões recolhidas de um politicólogo curioso sobre temas e exercícios de política, abandonados por prudência e uma certa exaustão de pesquisador preguiçoso.]
“Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas, sim, poderosas em Deus, para destruição das fortalezas”, Deus, Coríntios, 10:4-5
“Mesmo através de referências a uma ou outra manifestação sobrenatural, a religião diz respeito à vida terrestre”, Max Weber– Économie et Societé, Paris, PLON, 1995.
Andei, há tempos, seduzido pelo estudo das fontes e do processo que fazem do poder no Estado uma força ponderável na vida das pessoas.
Agucei a curiosidade para estudar e conhecer melhor como se formavam as fontes da influência nas Organizações.
Segui, naturalmente, os passos de Max Weber, na tentativa de conhecer e deslindar alguns nexos sugeridos por uma “sociologia das organizações” instrumento weberiano empregado para fixar a amplitude dos espaços ocupados pela burocracia, no âmbito do Estado, mas também no micro- universo da organizações.
Para Weber, a burocracia é “uma forma prescritiva para delegar responsabilidades e padronizar a comunicação”. [“Enonomia y Sociedad”, Fondo de Cultura Económica, México, 1944].
Nas organizações sociais — as grandes corporações, as organizações, e até empresas com destinação social ou econômica — a criação de ambiente propício à sua missão e aos seus negócios e empreendimentos. ainda que traduzissem compromisso altruístico, alcançam a definição de um marco regulatório sob o controle de uma cultura burocrática própria.
O Vaticano, conquanto se houvesse de respeitar a sua singularidade por tratar-se de uma organização para a consolidação e a propagação da Fé, nem por isso haveria de perder a característica de uma organização, gerida por uma burocracia própria.
É neste cenário que haveriam de ser estudadas as relações internas de poder, mando e obediência. Cuida Mintzberg que a formação de “grupos de interesse” dentro de uma organização subverte “a ordem burocrática” e “cria núcleos de poder” que alteram a hierarquia e as precedências no plano das decisões. [Henri Mintzeberg — Entendendo as Organizações , Bookman, São Paulo, 2023].
Retomemos o fio da conversa.
De quais “recursos políticos”, careceria um cardeal para tornar-se papa? De que instrumentos se serve a Cúria Romana, na rotina das suas decisões, para eleger um papa e vigiar os seus passos a fim de que não fuja ao controle do Consistório?
Pode-se falar, nos moldes como se organiza o Partido Comunista, quando era ainda comunista, e aplicá-los à estrutura de poder vaticana? Assim: existe um “coletivo” de cardeais formado das suas convergência teológicas e ideológicas? A disciplina, a hierarquia e a adesão incondicional às regras do partido explicam porque a sua estrutura organizacional tanto se assemelha à organização militar ( a “Companhia de Jesus” espelha estes rigores).
Em outras palavras, ao gosto dos cientistas políticos pós-weberianos, é possível falar-se de um “núcleo decisório duro” no interior dessa enorme amálgama de virtudes, sobeja e orgulho dissimulado ? Poder-se-ia suscitar a natureza de um “sistema político” no qual se fundissem regras e preceitos, conceitos e preconceitos compartilhados por estas criaturas do governo das coisas de Deus?
Diz-se que nenhum cardeal confessa pretender ser papa, afirmação categórica e pré-condição presuntiva para tornar-se candidato “in pectore”. Por que essa renúncia ao mais conspícuo cargo da Curul pontifícia torna-se, na prática, virtude e santidade prévia quando de fato só parece ser rejeitado por alguns velhos senhores em idade de sereno recolhimento às suas virtudes?
Na conta das trivialidades que as longas esperas pela fumaça negra anima, o que se dizem entre si e conversam essas criaturas no aguardo da inspiração esclarecedora do Espírito Santo?
Quais os juízos de maior peso entre os cardeais votantes, os emanados da Escola de Frankfurt ou as pontuações da “Rerum Novarum” de Leão XIII? Os “textos do Cárcere”, de Gramsci, ou as homilias de João XXIII? O que pensam essas gentis criaturas do “Foro de São Paulo” ? Como se faz um “papabili” de um cardeal vindo de tantos lugares, até mesmo do “fim-do-mundo” metafórico de Bergoglio, Francisco?
Como se faz um cardeal? Quais as virtudes e os méritos teologais, além da caridade, um tanto fora de moda, que transforma um pároco de aldeia, um monge discreto apagado pelas suas reflexões ou um padre secular, tocado pelas vaidade das gentes e pelos pecados do mundo?
Na Assembleia Francesa , o hemicírculo era formado pela Nobreza (278 deputados), pelo Clero (295)e pelo Terceiro Estado (604). Ali se misturavam os aristocratas, os patriotas radicais , os patriotas moderados e os monarquistas… Jacobinos, girondinos e sans-culottes…As metáforas “esquerda”, “direita” e “centro”, antes de envergarem conotação político-ideológica, não passavam d uma figura geométrica…
Nos Consistórios, a discrição dos prelados-eleitores e a conveniência desses antístites torna a escolha um ato de fé que poucos rompiam por curiosidade ou por fraqueza de caráter…
Que poderes exercita o papa, além da precedência na confrontação com as dissidências dissimiladas, as pequenas ruminações de vaidade e discreta sublevação? Acordos são costurados e negociados, na base do “toma lá, dá cá”? Ou para esses tratos humanos, demasiadamente humanos, cunhamos razões luminosas de divina inspiração? Prelazias e paróquias podem ser criadas e multiplicadas para emprego pacificador das demandas inter-cardinalícias? E um “certo cardinale” aquele cujo nome não é declinado, até onde chega a sua real “influência” ?
A que preço a renúncia aos pecados do mundo se paga com o envolvimento com as paixões terrenas? Por que indagaria Stálin de Pio XII sobre as “divisões de tropas terrestres dispunha o Vaticano?
Essa comparação não resiste ao bom senso, tampouco à imagem que as criaturas de fé fazem das suas crenças.
Retomemos as proposições iniciais que pedem possa ser avaliada a extensão verdadeira e real da Autoridade papal, além naturalmente da “Infalibilidade” das “Suas” decisões.
Este breve e pouco percuciente ensaio é, se me permitem a pretensão, um estudo, “à contre-poil”, sobre a estrutura e distribuição do poder em uma organização sólida, com dois mil anos de marca registrada, amada e reverenciada pelos seus fiéis, em todo o Ocidente.
A estrutura de governo da Cúria Romana recobre, como na estrutura do governo do Estado, as “atividades-fins” e as “atividades-meio”. Por “fins”, me apressaria em definir, embora incorrendo em erro de ignorância confessada, a “Revelação”e a “Salvação” dos homens e das mulheres de fé. Por atividade, circunstância ligada à produção dos meios, lembraria o governo e a burocracia, a organização dos processos internos, o ordenamento da hierarquia, das precedências, a ordem e a disciplina.
Da gestão dos procedimentos valeria lembrar os funções de Estado [Secreraria de Estado] e os Dicastérios. Os Organismos de Justiça, os Organismos Econômicos [e de Administração] e os Departamentos.
As “Instituições ligadas à Santa Sé” [a Casa de Deus vivo]exercem mandatos [“serviços que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade, no mundo de hoje”].
As competências pontificais parecem bem definidas e a transferência de responsabilidades e encargos demonstram seguir atos de vontade própria e aconselhamento do Pontífice.
As atribuições correspondentes aos encargos e funções delegadas e a natureza do seu exercício podem, entretanto, configurar a dimensão do poder compartilhado e a influência que possa repercutir sobre a Cúria e os seus executantes.
Numerosos documentos exarados pela Cúria, pelos Consistórios de Cardeais ou pelos Concílios de Bispos, em circunstâncias precisas, em territórios extra-muros, podem gerar competências pontuais para decisões específicas e dividir a autoridade vaticana.
Dir-se-ia que a infalibilidade do papal, um dos dogmas da Igreja, configura que o papa “em comunhão com o seu Sagrado Ministério” quando delibera em matéria de fé e moral, “ex cátedra”, está sempre certo, graças à “assistência sobrenatural do Espírito Santo”.
Estes exercícios de micropolítica aqui praticados não têm como propósito ou pressuposto questionar os atributos personalíssimos do Pontífice, nem qualquer dogma de fé da Casa de Deus, como se nomearia metaforicamente a Casa Vaticana. Porém, busca-se conhecer como é exercido e eventualmente seguido e cumprido às imposições do poder e da autoridade conforme a Constituição Apostólica, “interna corporis”.
Referências
[“Constituição Apostolica Praedicatum Evangellium”, Papa Francisco, 19/03/ 2023]
Fischer-Wollpert, Rudolf – O Papa e o Papado, Editora Vozes, Petrópolis
Max Weber – Economia y Sociedad, Findo de Cultura de Mexico, 1944
Henry Mintzberg – Entendendo as Organizações, Bookman, 2023

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