Para os familiarizados com a língua latina, essa última e agonizante flor do Lácio, dona de seguidores em número cada vez mais reduzido, a etimologia da palavra prosopagnosia não deve ocultar mistérios, cientes eles de que “prosopon” significa face, rosto, e que “agnosia” se iguala ao sentido de desconhecimento.
Não faço parte do grupo dos estudiosos do latim, o que sinceramente lamento. Descobri esse desmembramento vocabular consultando os recursos habituais de hoje em dia, a mesma fonte onde encontrei também estudos sobre essa falha cerebral que impede ou dificulta a alguém o reconhecimento do rosto de outras pessoas, ou até do próprio rosto.
O nome não é simples de gravar, pelo menos não para mim, que precisei esquartejar a palavra em três módulos (proso/pagno/sia) para guardar no meu cérebro, esse mesmo cérebro que rejeita, para os que sofrem do problema, o arquivamento das características faciais que nos distinguem uns dos outros.
O termo ocupou colunas em páginas de jornal e espaço nas telas, um tempo atrás, quando o ator Brad Pitt tornou público ser um “prosopagnopata” –, se é que existe tal nome –, confessando sua dificuldade de reconhecer as pessoas.
Talvez fosse apenas a projeção do desejo de um desses seres olimpianos, situados acima de todos nós, os comuns dos mortais, de que seu próprio rosto fosse esquecido, permitindo a ele a reconquista do tranquilo anonimato. Ou talvez sofra ele, de fato, desse mal, entranhado no hemisfério cerebral direito, e que pode atingir a qualquer um de nós.
Seja pelo peso da hereditariedade, seja por um trauma físico, não é impossível que eu, que você, que nós, um belo dia abríssemos nossos olhos para encarar um rosto, até então familiar, transfigurado em um estranho à nossa frente.
O que nos diferencia são minúcias. Temos dois olhos, o nariz, a boca. Temos a extensão da testa, o contorno do queixo, as bochechas. Temos a moldura dos cabelos (quando presentes), temos sobrancelhas, temos rugas, marcas, sinais e cicatrizes, tudo isso aglomerado em um espaço de pele não muito superior a um palmo.
São milímetros que nos diferenciam: um tantinho para a direita ou para a esquerda; um tantinho para cima, ou para baixo; a ondulação quase tátil das saliências e reentrâncias que recortam o formato da face; um afilamento mais delicado ou mais largo das narinas; a pureza das linhas retas ou das curvas desenhando um lábio superior, preenchendo um lábio inferior; uma leve obliquidade nos olhos ou um afastamento desigual da pupilas; uma elevação menos ou mais perceptível nas maçãs do rosto; um quase nada, aqui e ali.
São milímetros em que cabe um universo inteiro, compondo faces capazes de lançar ao mar mil navios, ou de fazer com que um rosto masculino, por exemplo, seja o do Brad Pitt. E que o outro não seja.Porém, e isso é importante, são milímetros que se resumem a dois olhos, nariz e boca.
Não admira, portanto, que apesar de tal minuciosa diversidade, evidente à maioria de nós, não admira que um “prosopagnata” (e uso de novo a palavra, talvez inexistente) encontre certa dificuldade em identificar os planos geométricos, a volumetria de cada face, a composição tridimensional, as sutilezas que caracterizam e distinguem nossa aparência.
E, na essência, todos nós nos parecemos, criado como fomos à imagem e semelhança divina, conforme anuncia o Gênesis. Trato desse assunto porque tive a oportunidade de conhecer brevemente uma pessoa que sofre de proso/pagno/sia, e que não considera o verbo “sofrer” adequado à condição dele.
A gente se acostuma, ele dá de ombros. É uma pessoa bem resolvida, que teve tempo suficiente para construir seus mecanismos de defesa diante de um mundo cheio de caras e bocas, quase todas elas sem registro algum em seu arquivo de memória.
Aprendi a disfarçar com muita classe, ele ri. Posso conversar um bom tempo com você, sem ter a menor ideia de quem seja, mas vou perguntando, vou puxando assunto, e aos poucos vou me lembrando quem você é, pela voz, pelos gestos, pelos nomes que você referencia.
Sei que me chamam de antipático, por deixar de cumprimentar muita gente por aí, mas não posso fazer nada. Explico quando for possível. Aceitem se quiserem.
Mostro a ele, na tela do celular, a foto do seu mais famoso colega de enfermidade. Quem é esse, ele pergunta inabalável, e continua desconhecendo as imagens que apresento, de astros e estrelas da nossa e de outras galáxias.
Pelo jeito, ele vai esquecer também a minha cara de curiosidade, aliviando o sentimento de culpa pelo interrogatório ao qual o submeti.
Da minha parte, o que eu sei é que nunca vou deixar de lembrar do rosto dele.