Quando tudo isso virar história. Por Angela Barros Leal

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Em breve, muitas histórias serão contadas sobre o que passamos. Não agora. Não já. O barco ainda se encontra em pleno mar, proa na direção da praia, porém na maré das consequências ainda se formam vórtices implacáveis, deixando rastros de espumas salgadas como lágrimas. Em breve muitas histórias serão contadas, quase todas elas imersas na mais profunda tristeza.

Lembra quando? – nos diremos em grupos. Lembra como? – nos consultaremos em retrospecto, com nossas melhores vozes de profetas do passado. Uma sucessão imensa de experiências vividas aguarda o dia em que será escutada, em fila tão desordenada como é a fila da morte.

No futuro falaremos disso. Agora, ainda não. São perdas irreparáveis que iremos contar, narrativas particulares que ganharão visibilidade pública, sentimentos individualizados que se descobrirão coletivos. São emoções que carecem de tempo para ser digeridas, trabalhadas, reconstruídas, e o tempo não é chegado.

Como dizer, hoje, que eu ouvi, meses atrás, autofalantes de carros de som percorrendo as ruas no entorno da minha casa, igualzinho aos filmes de ficção científica, às cenas do apocalipse que lemos em livros, alardeando sobre a criatura que se aproximava do lar de cada um, já escondida em todas as superfícies expostas, nos sacos plásticos das compras, no solado dos calçados, na palma das mãos, no ar que se respirava?

Hoje, como trazer aos que eram crianças demais para recordar o perigo, a compreensão de como cantavam, todas as manhãs, os pássaros encantados pelo silêncio das ruas desertas, como os animais selvagens vinham explorar o asfalto despovoado, como se fazia forte o cântico das Ave-Marias postas a tocar nas varandas, naquela hora misteriosa entre o cão e o lobo, anunciando o fim dos tempos e a Segunda Vinda de Cristo?

Como definir o terror em estado puro, o pânico mais desonroso, as palpitações e taquicardias em nossos peitos temerosos, o punhal agudo da depressão, o medo espalhado nas casas e nas ruas do mundo inteiro, o repúdio ao contato social, a rejeição ao aperto de mão, a negativa ao beijo, ao abraço?

De que jeito explicar a quem não passou por isso, às gerações que ainda estão para nascer, sobre a ostensiva iluminação noturna em todos os aposentos, de todos os apartamentos, de todos os prédios e casas onde nos entrincheirávamos para nos proteger do perigo?

Qual será a maneira pela qual nos justificaremos ter dado as costas às mais dolorosas partidas, ter estado ausentes de sepultamentos, ter fugido ao nosso sagrado dever de nos despedirmos dos nossos mortos, corpos envoltos em plásticos, em panos, sepultados em covas improvisadas, intocáveis como se vivêssemos em tempos medievais?

Como vamos descrever com precisão o que asfixiou todo o planeta, as portas fechadas dos templos e igrejas, as cadeiras emborcadas sobre as mesas de bares e restaurantes vazios, os centros desertos das cidades, o espaço ermo em que foram transformados salões e locais de festas, impedidos todos de exercer suas funções?

De que jeito iremos transmitir o que foi viver com o rosto encoberto durante anos, mascarados como malfeitores, deixando à vista, para diálogos mudos, tão somente nossos olhos temerosos?

Um dia iremos discorrer sobre como mantivemos embaladas no vácuo as celebrações, as festividades, os aniversários, as datas comemorativas; como não percebemos a passagem de um mês a outro, de um ano a outro, em uma continuidade de tempo indiferente a relógios e calendários; como 24 horas podiam se passar em voo veloz, e o girar de uma hora parecia infindo.

São questões que me perturbam hoje, que certamente irão perturbar até o fim dos meus dias, mas que, por enquanto, mantenho em silêncio.

De onde veio o perigo não se sabe, o que povoa lendas e imaginações. Talvez, quando forem criados sua prevenção e seu definitivo antídoto, possamos falar sobre ele e sobre o que passamos. Por enquanto, ainda não.

Ainda existe tanto que se precisa saber. Como se comporta a longo prazo. Quais suas variantes, seus disfarces e camuflagens. Que sombras deixará em seu percurso devastador. Que efeitos duradouros restarão em nossos corpos. Se adormecerá um sono de cem anos ou repousará por uns tempos, recobrando forças. Daí mais razões para prolongar o silêncio e apagar, pelo menos por enquanto, minha esperança de falar sobre tudo isso – até o dia em que tenha virado História.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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