É impressão minha, ou essas ruas e avenidas tornaram-se mais estreitas do que eram, três semanas atrás? Essa sequência de buracos no asfalto, fazendo do trajeto um desconfortável rali urbano, já seria parte da paisagem quando parti, três semanas atrás? É minha imaginação, ou a cidade pendurou mais fios entre os postes, ou mesmo fincou mais postes, nessas três semanas em que estive fora?
Essa fartura de pichações nos muros, terá sido traçada nesses últimos 21 dias, ou já enfeiava as fachadas de casas e edifícios, antes da minha viagem? Foram erguidos para mim esses monumentos desconcertados nas coxias, formados por pilhas de lixo, galhos secos de árvore, sacos pretos com descarte doméstico? Encontravam-se aí quando acenei em despedida, para curta permanência em outras paragens?
Três semanas atrás havia esse número de crianças ziguezagueando à vontade entre os veículos, colocando as mãos em concha no vidro blindado das janelas? As buzinas costumavam soar com tamanha intensidade, orquestradas sob esse sol de claridade impiedosa? Era desse jeito a cidade, antes da minha partida?
Você, que já voltou de paragens transmarinas, transoceânicas, sabe do que eu falo.
Trato desse inegável mistério que nos aguarda, no retorno de roteiros direcionados a cruzar latitudes e longitudes, dessa prestidigitação que nos faz trazer, na bagagem da volta, o espanto de quem realizou uma viagem no tempo.
Porque toda viagem não se dá apenas no espaço, mas também no tempo.
Você viu o reluzir de tantas luzes, apreciou a extensão das avenidas, encheu os olhos de fontes d´água, reparou no colorido dos parques e jardins e flores, respirou o ar gelado das nuvens de neblina, fartou-se de artes e belezas criadas por gênios eternos. Você andou em auto/móveis, transportes que, de fato, se movem sozinhos, teve suas refeições servidas por autômatos, robôs atenderam suas ordens, máquinas programaram seus passeios.
Ou então, você enfrentou estradas em cujas margens transitavam vacas, camelos, rebanhos de ovelhas comandadas por pastores, de cajado nas mãos. Você ousou desbravar os céus em balões, frequentou mercados apinhados de produtos desconhecidos, aspirou cheiros insólitos, ouviu a musicalidade de idiomas intraduzíveis, experimentou alimentos e bebidas de origem milenar, caminhou em ruas e pontes construídas para a passagem de tropas guerreiras de povos extintos.
Você repousou sua cabeça em travesseiros embebidos de sonhos alheios. Você registrou, na sua câmera, fantasmas ocasionais, cujas sombras você só iria discernir no retorno. Você viu a si mesmo no rosto ou nos gestos dos nativos de tão diversas paragens, e confirmou que somos, sem dúvida, uma mesma espécie.
De um jeito ou de outro, e ampliando o raio de ação dos meus ociosos pensamentos, não estou de todo errada ao afirmar que toda viagem é feita no tempo e no espaço. Uma espécie de cruzamento das coordenadas cartesianas, que Albert Einstein deixou de incluir em sua famosa equação.
Aquele sonho de voltar ao mesmo lugar onde você esteve tão feliz na sua juventude, ou no começo de sua idade adulta, não irá jamais realizar. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, profetizava o proparoxítono Heráclito de Éfeso.
Você imagina um quadro fixo no tempo, voltar àquele espaço onde foram feitas efêmeras amizades eternas. Você traça na sua imaginação o cenário imutável de cafés, de pontos de encontro, de horas e horas perdidas em infindáveis conversas, tão sólidas e antigas quanto a Sé de Braga.
Tudo que é sólido continua lá, no mesmo espaço. Porém, você não vai encontrar jamais aquele mesmo tempo. Cada viagem é única, irrepetível.
São constatações que me deixam mais resignada ao ver, tanto na ida como no retorno, a velocidade com que foram desconstruídos os espaços de onde parti, ou aonde cheguei, em um tempo que pode variar entre três semanas e uma vida inteira.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.