No início dos anos 90, quando desmoronou o bloco soviético na Europa, e os regimes comunistas se dissolveram sem a reação de um único tiro, o modelo capitalista generalizou-se, anabolizado ainda mais pelo advento da Globalização. O então chamado neoliberalismo tornou-se uma tendência dominante e alguns apressadinhos chegaram a definir a última década do século 20 como “o fim da história”.
Mas o tempo não pára e já naquele momento o embrião de um novo polo contentor era gestado na China com reformas econômicas radicais, lideradas pelo pensamento visionário de Deng Xiaoping – o personagem que, de fato, forjou o século 21 ao introduzir práticas de mercado capitalistas num país que concentra, sozinho, 25% da mão de obra disponível no planeta. “Não importa se os gatos são brancos ou pardos, desde que peguem os ratos”, vaticinava ele com régua pragmática ao defender mecanismos de mercado para o desenvolvimento das forças produtivas sob o comando de um partido de tradição marxista.
O resto é história: o “império do centro”, como os chineses se referem ao seu país, cresceu por três décadas a taxas médias de 8% ao ano e fez com isso o sistema de poder global evoluir para um modelo de multilateralidade, muito mais complexo porque abriu para o mundo, e sobretudo para os países em desenvolvimento, maior margem de manobra e uma perspectiva real de reduzir sua dependência em relação ao “grande irmão do Norte”.
Com isso, o imaginário do povo norte americano foi abalado ao ver encurtado o horizonte de hegemonia que seu país passou a ocupar no ocidente a partir das segunda guerra mundial. Neste sentido, o 11/9 jihadista foi a cruel metáfora para o fim de um ciclo em que os EUA imperava no concerto internacional das sociedades de mercado sem que outras nações, isoladamente ou em bloco, pudessem rivalizar com seu poder de manobra e de imposição.
É este sentimento novo, de fragilidade, que dá combustão ao Make America Great Again de Donald Trump e sua trupe hitech: a neurose que eclode sob ameaças de uma grandeza perdida. Contudo, há uma contradição insanável entre o discurso triunfalista de Donald Trump e as novas condições, menos favoráveis, em que seu país se insere no contexto internacional: embora seu lema, o MAGA, faça acenos com a crença na possibilidade de que voltem os bons tempos (para eles, claro), seus termos já denotam também essa condição nostálgica, de perda (“Again”, quer dizer, como no passado).
Não creio que os mandarins da China, com seu pragmatismo extremo e senso dialético, tomem a volta de Trump à Casa Branca como uma má notícia. Pelo menos, devem vislumbrar, nos riscos, algumas oportunidades. Afinal, ao abrir diversas frentes contenciosas, os Estados Unidos favorecem uma ainda maior aproximação do ocidente com a China – e aqui me refiro a Economia, isto é, investimentos, mercados e divisas.
Acesso livre à Groelândia, retomada do Canal do Panamá, definição do narcotráfico como terrorismo, deportações em massa, sobretaxas nas importações, pressão por maiores investimentos militares da Europa e ruptura com acordos ambientais – tudo isso, tomado ao pé da letra (não é o caso, calma) poderia ser entendido até como uma declaração de guerra ao resto do mundo, não fosse, claro, os contrapesos da democracia norte americana e a interdependência que define as relações globais hoje – e Trump, que muito blefa, sabe disso.
Enfim, para a China – mais adiante, ao fim de tudo – Trump terá sido, se errar na dose, uma boa oportunidade de dar colo ao mundo.