Um drama cearense e sua linha do tempo. Por Angela Barros Leal

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O enredo desse drama começa com um boi zebu, presenteado ao Padre Cícero, no Juazeiro do Norte, por volta da primeira década do século XX. Certamente antes de 1917, data em que seu doador, o industrial cearense Delmiro Gouveia, tombou vitimado por um impiedoso assassinato – como se não fossem impiedosos todos os assassinatos. 

O Padre Cícero transferiu a posse do boi a um de seus acólitos, o Beato José Lourenço, que o conduziu pacificamente a um abrigo ao pé da serra da Araripe. Por sua ambientação, entre afloramentos rochosos e preciosas fontes de água, o lugar tinha o nome de Caldeirão. Um agrupamento de retirantes cresceu no local, ao mesmo compasso em que se ampliava o poder terreno do Padre Cícero, assessorado pelo médico baiano Floro Bartolomeu, chegado a Juazeiro em 1908.

Nesse ponto da linha do tempo, já apresentados quatro personagens – além do boi, que por sua docilidade ganhara o nome de Boi Mansinho –, eu me pergunto: que mirabolante alinhamento de planetas teria conspirado para aproximar, no breve espaço de três décadas (nada mais que um sopro na História do mundo), o padre demiurgo, o industrial incansável, o médico-político de ambições desmesuradas, o beato arrebanhador de multidões, e o boi condenado a pagar pelos pecados alheios.

E mais: que criatividade, a do roteirista dessa peça, que ousou acrescentar, no mesmo cenário, iluminado pelo céu sem nuvens do Ceará, dois outros destacados personagens: o bandoleiro dos sertões, apelidado Lampião, a quem o Padre prometera um título de Capitão – desde que combatesse um contingente rebelde, cujo líder, conhecido por Luiz Carlos Prestes (esse, o coadjuvante-surpresa), formara uma coluna metida em marcha, de caatinga a dentro, disposto a mudar a realidade do Brasil. 

Que querubins de bochechas infladas, soprando lufadas de ventos singulares, teriam voejado de Leste a Oeste, erguendo redemoinhos e traçado o cruzamento dos caminhos dessas pessoas, ícones cada qual em suas áreas, enlinhando num só novelo as histórias delas, em páginas que se diriam escritas por um autor de obras de realismo mágico. 

Em uma mesma página da História, a ousadia criativa de unir os três gigantes do Nordeste – segundo o poeta popular Antônio Rodrigues de Andrade, o Mainha, “Lampião, na valentia; Padre Cícero, na oração; e Delmiro no trabalho” –, a outros protagonistas, vilões e antagonistas. 

E atravessando em passo lento o palco do teatro, o Boi Mansinho do Caldeirão. Um boi Ápis todo nosso, qual fosse transplantado do Egito para o Sul do Ceará, com guirlandas feitas das florezinhas do mato a adornar seus chifres, com o povo raspando seus cascos para o preparo de chás e meizinhas, usando suas excreções em preparos curativos, e que seria o bode expiatório dessa convergência extraordinária de personalidades eternizadas.

Ao boi endeusado ficara reservado um sacrifício pagão, em uma encenação com tantos e tão disparatados fatos e integrantes. Arrastado do Caldeirão para a cidade, sob ordens do todo-poderoso Floro Bartolomeu, foi executado à força de marretas em frente à cadeia, sob as vistas do detento José Lourenço.

Pois conta o enredo desse drama que Floro obrigara Lourenço não só a testemunhar a morte, como a comer a carne do Boi Mansinho, e que ele se negara por detrás das grades, como se negaria a provar caso fosse sua própria carne. Seria punido com duas semanas sem alimento, o que ele cumprira em silêncio, suportando sem fome o seu jejum de mártir. Tratando-se do médico, do beato, e da terra sagrada do Juazeiro, tudo parece possível.

Próximo do fim, são acrescidas ao roteiro cenas de guerra, heroísmo e mortandade. Em 1937, aviões enviados pelo Governo bombardearam e mataram os moradores do Caldeirão, que se mudara com seus penitentes para novo palco, após a derrubada da capela, das habitações, e a dispersão dos sobreviventes. 

Nos créditos finais dessa peça de puro realismo, sabe-se que José Lourenço escaparia ao cerco, abençoado com morte domiciliar em 1946. Delmiro partira há muitos anos. A sífilis levara Floro, ainda em 1926. O Padre Cícero sairia fisicamente de cena aos 90 anos, em 1934. Lampião sobreviveria até 1937. Luiz Carlos Prestes prosseguiria em sua marcha, vendo nascer o ano de 1990 sem alcançar sua sonhada Revolução. 

Uma linha do tempo irrepetível no tecido do Ceará, costurada à bala de rifle, ao rendado da peixeira, ao ponteado do punhal, ao ponto de cruz das bombas, ao rolar dos rosários e ao murro da marreta que arrancou o mugido de morte do Boi Mansinho, o mais inocente objeto de cena desse drama.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder 

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