“Não são as piores ações que nos causam repulsa, mas a ausência de qualquer arrependimento por elas.”
— Friedrich Nietzsche
O Brasil perdeu a capacidade de se escandalizar com a morte — principalmente com a morte que vem do asfalto. O trânsito já não é mais um espaço de deslocamento: virou artéria de fúria, de pressa, de irresponsabilidade. E os carros, por sua vez, transformaram-se em armas empunhadas por motoristas que tratam a direção como um ato de soberania — como se estivessem acima das leis, e da vida.
O resultado está nos números: 10.887 pessoas perderam a vida em decorrência da mistura de álcool com direção em 2021, o que representa 1,2 óbito por hora, segundo matéria da Agência Brasil publicada em 19 de junho de 2023.
Famílias dilaceradas, crianças órfãs, corpos partidos por latarias em alta velocidade. Mas nada parece mudar. O Estado assiste, leniente. A sociedade se acostuma. A impunidade, sempre ela, renova a tragédia. Repete-se a velha lógica: se o assassino está ao volante e não carrega uma arma de fogo, então seu crime é tratado com indulgência — mesmo quando há sangue e cerveja no banco do passageiro.
Quando se mistura álcool e direção, há uma escolha. E toda escolha consciente que ignora o risco de matar configura dolo eventual. O sujeito pode não desejar diretamente a morte, mas a aceita como possível consequência do seu gozo, da sua pressa, da sua arrogância. O Código Penal não foi feito para aliviar monstros motorizados — foi feito para proteger a vida, ainda que a Justiça, muitas vezes, não aplique a severidade que o fato exige.
Em Fortaleza, um caso recente escancara a inversão de valores que se tornou regra no país. Segundo matéria do jornal Diário do Nordeste, publicada em 21 de junho, um motorista se recusou a realizar o teste de alcoolemia após atropelar dois rapazes. Imagens de câmeras de segurança registraram o impacto brutal: a caminhonete por ele conduzida invadiu a preferencial e colidiu violentamente com uma motocicleta.
Não houve fuga. Ele foi preso em flagrante, pagou fiança e obteve liberdade durante audiência de custódia. Foi autuado por lesão corporal culposa, mesmo com a apreensão, no interior do veículo, de cervejas, drogas e psicotrópicos, conforme noticiado amplamente pela imprensa.
Uma das vítimas faleceu dois dias após o atropelamento. O outro rapaz segue hospitalizado, com traumas graves. Naturalmente, a tipificação penal deverá ser revista diante do óbito subsequente, após a conclusão das perícias pelos órgãos competentes.
É importante destacar que o próprio STJ já decidiu que a embriaguez, isoladamente, não configura dolo eventual. No julgamento do HC 208.285/SP, o ministro Otávio de Almeida Toledo acolheu o argumento da defesa ao afirmar que a embriaguez, por si só, não justificaria a imputação dolosa — especialmente em casos onde não se comprovam excesso de velocidade, direção temerária ou violação de regras de trânsito.
Mas o caso de Fortaleza vai além da mera embriaguez. Há agravantes claros: recusa ao bafômetro, invasão de faixa preferencial, apreensão de drogas e psicotrópicos, relatos de velocidade excessiva e vídeos que comprovam a brutalidade do choque. Esses elementos, quando analisados em conjunto, autorizam a imputação por homicídio com dolo eventual — especialmente porque fica evidente que o agente aceitou conscientemente o risco de matar.
O mínimo que se espera é que o caso seja julgado como crime doloso — jamais como um delito culposo.
Não estamos mais diante de casos isolados. Estamos diante de uma repetição insuportável, que revela o colapso moral da responsabilidade. E o nome disso não é imprudência — é indiferença criminosa. É o desprezo voluntário pela vida dos outros. E quem age assim não merece compreensão. Merece julgamento — e condenação.
É hora de reconhecer que nem tudo é acidental. Porque há acidentes — e há assassinatos disfarçados de acidente.
