Amizades no poder – entre o interesse e o afeto verdadeiro; Por Paulo Mota

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Em um momento em que o clássico “Vale Tudo faz sucesso em um remake, a discussão sobre as relações de interesse e a efemeridade das amizades ligadas ao poder nunca esteve tão em evidência. Assim como na trama da novela, em que personagens se aproximam por conveniência, vemos isso também refletido nas redes sociais e nas estruturas de poder, sejam públicas, privadas ou familiares.

Nos bastidores de Brasília, bate-papos do Becco do Cotovelo ou nos corredores de Wall Street, circula uma máxima que não carece de comprovação empírica: as amizades duram o tempo de um mandato. Essa lógica cruel — também presente nas grandes corporações — transforma relações humanas em extensões das estruturas de poder. O velho ditado “rei morto, rei posto” nunca pareceu tão atual.

A amizade, nesse cenário, torna-se um conceito elástico, muitas vezes confundido com aliança, conveniência ou rede de apoio circunstancial. E a pergunta que emerge com força é: como distinguir uma amizade verdadeira de uma amizade por interesse?

Um ex-executivo confidenciou certa vez que, ao deixar um cargo de liderança, viu suas curtidas nas redes sociais evaporarem. Não eram apenas algoritmos. Eram pessoas — ou sombras de pessoas — que desapareciam junto com o crachá. A bajulação, os convites para almoços e os elogios públicos tinham data de validade: a do poder que ele exercia.

Esse tipo de relação instrumental, embora comum, traz impactos subjetivos profundos. Misturar o que é institucional com o que é afetivo pode gerar frustrações, ressentimentos e até mesmo cinismo. Afinal, quem nunca se sentiu traído ao perceber que o vínculo só existia enquanto havia status envolvido?

A arte, como sempre, oferece caminhos para pensar essas nuances. Na música, em Canção da América”, Milton Nascimento nos lembra que “amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves”, ressaltando a importância das amizades verdadeiras, mesmo em um mundo onde, muitas vezes, as conexões parecem efêmeras e utilitárias.

No contraponto, Nelson Sargento desnuda as aparências e os pactos de conveniência em Falso Amor Sincero”,onde a ilusão mútua sustenta uma relação fabricada: “Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”.

Essa lógica de aparência e cinismo também está presente em Brasil”, de Cazuza — tema de abertura da novela Vale Tudo —, quando ele canta: “Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim”. A canção escancara a dissonância entre o discurso e a realidade, entre o que se proclama em público e o que se negocia nos bastidores. A música é um grito contra a hipocrisia institucional e uma denúncia das farsas que estruturam o jogo do poder.

No cinema, o clássico “Todos os Homens do Presidente” (1976), ao retratar os bastidores do escândalo Watergate, mostra como a confiança se dissolve em meio à disputa de poder e silêncio. Já em “O Poderoso Chefão” (1972), a frase “não é pessoal, são apenas negócios” escancara a frieza das relações no topo das hierarquias — inclusive entre amigos de infância.

Na literatura, “O Príncipe”, de Maquiavel, embora datado, segue atual ao mostrar que, na política, alianças são muitas vezes mais úteis que amizades. Em contraponto, A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, narra uma amizade complexa e real, marcada por afeto, inveja e cumplicidade — e lembra que laços verdadeiros sobrevivem a mudanças de status e cenário.

Assim, não é raro que, ao fim do espetáculo das experiências vividas, seja na vida real ou na ficção, restem apenas os escombros de uma lealdade inventada. O que se vendeu como amizade, confiança ou projeto coletivo revela-se apenas uma aliança de ocasião — útil enquanto dura, mas facilmente substituível quando já não convém.

Diante disso, talvez a saída esteja em cultivar relações com clareza de propósito. Reconhecer quando se está em um relacionamento profissional, sem esperar reciprocidade afetiva. E, ao mesmo tempo, valorizar os laços que resistem à maré do poder — aqueles que seguem presentes mesmo quando os holofotes se apagam.

No fim, amizade verdadeira é aquela que permanece depois do mandato, do cargo e da foto no mural. Porque onde há só interesse, não há laço — há contrato. E esse, a gente sabe, expira.

Mas há um ponto fundamental: cultivar boas relações — sinceras, respeitosas e duradouras — não é só questão de ética ou afeto. É também uma estratégia inteligente. No mundo corporativo, na política e até na vida pessoal, conexões sólidas e confiáveis abrem portas, constroem reputações e atravessam ciclos de poder.

Relacionamentos bem cuidados geram capital simbólico: confiança, credibilidade e memória afetiva. Pessoas lembram de quem as tratou com respeito mesmo quando não havia vantagem envolvida. Essa memória, muitas vezes silenciosa, é o que define quem permanece em cena depois que a maré muda.

Em tempos líquidos, em que tudo parece descartável, ser uma presença firme, ética e respeitosa é, paradoxalmente, o que mais se destaca. Porque quem permanece depois da festa não é o bajulador — é o amigo.

Paulo Mota é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, especialista em Comunicação Estratégica, Projetos Culturais e Gestão Pública. Ex-Folha de Sã o Paulo, El País e Banco do Nordeste. Atualmente é gerente de Comunicação e Marketing da Companhia de Gás do Ceará.

 

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