“Onde falta o lar, sobra o instinto” — Nietzsche
Vivemos a era dos órfãos de pais vivos. Crianças largadas — umas no berço dourado da indiferença, outras no asfalto da miséria. Uns cercados por seguranças, outros por traficantes. O resultado? Trágico para todos.
Ricos ocupados com status terceirizam a criação dos filhos. Babás, motoristas e terapeutas substituem o que só pai e mãe podem dar. Crescem cercados de conforto, mas afogados em silêncio. Implodem em automutilação, vícios e suicídio. Ou explodem em violência. Como no caso do Porsche azul em São Paulo: o jovem matou, e a mãe o tirou das mãos da autoridade antes mesmo que a Justiça agisse.
Os pobres não terceirizam — abandonam por necessidade. Saem cedo para limpar, vender, entregar. As crianças ficam sem proteção, e as ruas as adotam. Aprendem com o medo, com a fome e com a ausência. Entram nas facções porque ninguém as chamou para mais nada. Em pouco tempo, tornam-se feras indomáveis — e matam sem piedade.
Há mães que ainda podem fazer uma escolha decisiva: estar ao lado dos filhos nos primeiros anos — sem terceirizar o essencial. Quando isso acontece, merece reconhecimento. A presença materna, nesse período, não é detalhe: é pilar. É, muitas vezes, a única barreira entre a infância e o abismo.
Mas e as mães pobres? Essas não escolhem — são empurradas. Saem antes do sol, voltam depois do dia, e deixam os filhos sob os cuidados de quem houver. O Estado observa, mas não age. Não há política séria que reduza essa distância brutal entre quem pode proteger e quem apenas sobrevive. Tive contato direto com essa tragédia em inúmeros plantões judiciais. A cena se repetia: adolescentes infratores, quase sempre sem pai. Apenas a mãe — sofrida e exausta — comparecia à audiência.
Vivemos sob um sistema que engole tempo, afeto e vínculos. Um aparelho que exige produtividade. A engrenagem gira com base na ausência: quanto menos em casa, mais bem-vista é a profissional. Não importa se o preço é uma criança criada pelo tablet ou pela rua. A sociedade normalizou essa lógica perversa — onde o lucro devora o lar sem limites, e a infância é o primeiro sacrifício. Sem mãe por perto, tudo é mais difícil — e a noite, para a criança, é sempre mais escura.
Luxo ou miséria, o fracasso começa no abandono. Colhemos agora os frutos de décadas de relativismo, frouxidão estatal e dissolução familiar. A ideologia do “deixe ser” criou monstros — meninos que matam por um celular, adolescentes que se matam após internações, famílias que fingem normalidade entre jantares e enterros.
Hannah Arendt, uma das pensadoras mais agudas do século XX, já alertava para os perigos de um mundo que dissolve o espaço íntimo em nome da produtividade. Quando o lar perde sua centralidade e os vínculos familiares são tratados como obstáculos à autonomia, toda a estrutura afetiva se fragiliza. E deixava o alerta: “Quando a casa deixa de ser abrigo e se torna apenas dormitório, a infância se perde no ruído do mundo.”
Quando uma geração de crianças cresce aprendendo que não pode contar nem com a própria família, o tecido social apodrece. Se quisermos um futuro menos violento e mais justo, precisamos cuidar de quem ainda está no começo da vida. Do contrário, continuaremos a enterrar vítimas de uma tragédia que poderia ser evitada.
O sangue que escorre nas ruas e becos é irmão da angústia que se esconde nos condomínios. E os filhos gritam, silenciosos: “Onde estavam vocês enquanto eu desmoronava?” A resposta, todos sabemos. Estavam longe demais…
