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Dos velhos libelos às fakenews, por Dimas Oliveira

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Jean-Paul Marat assassinado na banheira por Charlote Corday, em quadro de Jacques-Louis David (1793): O filósofo, jornalista e agitador da Revolução Francesa cunhou a designação “inimigo do povo” para atacar os grupos políticos mais moderados. Muitos dos alvos de seus panfletos foram à guilhotina. Mais tarde, o mesmo termo foi usado na justificativa do horror dos expurgos stalinistas.

Denis Diderot, o notável iluminista, filósofo e escritor francês, costumava dizer que os mais absurdos sistemas de pensamento eram os mais difíceis de combater. Com o benefício de uma visão retrospectiva basta a lembrança da velha maxima de Goebbels, sobre a mentira que repetida mil vezes torna-se verdade.

A própria transformação de uma cruz com ganchos em símbolo do mal é a prova do poder da propaganda. Uma imagem usada por muitas culturas milênios antes de Cristo, ou “svastika” em sânscrito, condutora do bem estar, metamorfoseando-se na conhecida suástica nazista, uma ideia absolutamente distante de suas feições originais.

Da mesma forma, poderemos mergulhar nas lutas convulsivas da velha França para nos depararmos com os famosos libelos, ou publicações anônimas, que mobilizavam toda a polícia e um enorme contingente de recursos para se encontrar a origem das calúnias e difamação contra os poderosos da corte e clero, chegando-se aos reis.

Uma mistura de fakenews com informações por vezes verdadeiras que corroíam a autoridade do Estado, não apenas pela ousadia da publicização da vida privada e os escândalos daí advindos, mas por ousarem furar o monopólio das narrativas do próprio poder.

Então, se no passado os libelos agiam como cupins nas muralhas tidas como impenetráveis da Coroa, ajudando a eclosão da Revolução Francesa e os fundamentos da República, as redes sociais de hoje e as experiências daí decorrentes, ganham contornos ainda mais disruptivos, na medida em que não contam com nenhuma peia legal ou planetária que submetam à sua lógica.

Vistas assim, as redes sociais são livres como as moedas circulantes sobre o planeta. Estando a sua realização diretamente vinculada ao conteúdo do que é postado, como os hábitos e pensamentos dos usuários, mas apenas e na exata medida em que estes, ao serem recolhidos, se transformam no novo ouro a aumentar os rendimentos para as plataformas e os seus acionistas.

Hoje, muitos dos debates contemporâneos incidem sobre esse imenso poder das corporações sobre as pessoas e suas opiniões, na medida em as redes sociais acumulam informações vitais sobre os medos, os sentimentos, as perspectivas, o modo de vida e tudo o mais que possa delinear quais ações podem ser dirigidas para um determinado publico ou nichos com o objetivo de seduzi-lo.

Os produtos podem variar de ideias a sabonetes. O curioso é que no curso desse processo a liberdade de navegar é pressuposto para que a colheita de informações chegue a seu termo.

Apesar dessas observações elementares, ainda existem defensores da ideia de que existe total identificação entre Países com absoluto controle estatal sobre a navegação dos cidadãos, como a China, e o controle das mesmas pelas bilionárias plataformas privadas donas das redes sociais.

Fato que serviria para elidir criticas maiores a países que procuram controlar seus cidadãos. Afinal, que diferença haveria entre controles? Seja através de Estados autoritários ou empresas multinacionais?

O elementar ainda escapando entre os dedos. Esquecem que as plataformas, diferente de estados autoritários, necessitam, ao contrário destes, conferir aos usuários a absoluta e livre possibilidade de navegação e de explicitação das suas opiniões, visando transformar em conhecimento um gigantesco número de dados.

Liberdade que, inclusive, se constitui muitas vezes numa fonte de problemas para vários países, na medida em que falsas informações ou o uso dos dados das mesmas podem colocar em risco a vida das pessoas ou a de instituições, fato evidenciado na ultima pandemia e nos escândalos sobre a manipulação da opinião pública como no Brexit ou eleições americanas. .

Contraditoriamente, são nessas avenidas abertas e legadas pelo mundo, no espaço virtual das conexões, que milhões de indivíduos temem se confrontar com a perturbadora experiencia de serem cancelados ou excluídos. Exatamente onde o espetáculo da existência cobra um alto preço e as ideias e opiniões manifestadas, são apenas os elos visíveis de algo mais poderoso, a própria vida dos indivíduos que dão a elas sentido.

Dessa perspectiva, a proliferação de duelos verbais valem muito mais pelos meios utilizados, as redes sociais, do que pela natureza das polêmicas. Ser cancelado numa rede social significa para muitos a obliteração de uma existência inteira. Existir é conectar-se. A polêmica é, inversamente, apenas um meio.

Na verdade, são um complexo e desesperado apelo à existência. Se viver é estar conectado, sem debates desapareço. Então milhões teimam em existir mantendo a polêmica pela polêmica, repassando textos e vídeos que nunca foram abertos ou lidos, mas que vieram de grupos com os quais mais se identificam. Mísseis disparados na direção do outro onde o deleite se encontra, mais no som dos estrondos, do que propriamente na destruição das razões contrárias.

Enfim, a diplomacia desdenhada e esquecida. O lento e tortuoso caminho de criação e substituição de códigos de conduta, de civilidade, muitas vezes entendidos como expressões de frivolidade, mas que pouco a pouco se sofisticaram como novas éticas de sociabilidade, evoluindo e transformando a face do mundo na lição de Richard Sennett.

O novo homem procurando construir pontes e não muros. A própria expressão diplomacia sendo referenciada e dirigida a qualquer pessoa com habilidade no trato com o outro. O diplomata identificado como alguém hábil e leve com as diferenças e diferentes, mas soterrado hoje por um edifício de ódios mobilizados, onde a verdade e a razão não são bem vindas e o mais prazeiroso exercício se concentra em estigmatizar e destruir o adversário.

E é exatamente sob esse peso e sem qualquer tipo de contenção, convocando amiúde os serviços da agressividade verbal, que a verdade nas redes sociais se dissipa e é fragmentada. Ela, a verdade, requer totalidade, conexões, amarrações de variáveis, enquanto a mentira percorre o caminho oposto, o fragmento universalizado, exigindo assumir o lugar do todo.

As fakenews surgem como a expressão radical desse falseamento, se nutrindo desse caldo nebuloso entre fragmentos da realidade e a vontade dos seres humanos de não serem demitidos desse mundo de aparências.

Dimas de Oliveira Costa é articulista do Focus.

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