Vamos supor que, por um desses golpes de sorte, viesse parar em suas mãos uma das 180 Bíblias produzidas por Johannes Gutemberg – sim, dele mesmo, do criador do tipo móvel em metal que possibilitaria a difusão de livros para as massas, e a partir daí a democratização do conhecimento.
Sustentando em suas mãos um exemplar autêntico da Bíblia, o incunábulo original, na posse de algo inqualificavelmente raro, do ponto de vista histórico ou sagrado, criado ainda no século XV na cidade de Mainz (ou Mogúncia), hoje Alemanha – você percebe que faltam cerca de 50 folhas das mais de 640 que compõem o livro: o que você faria.
Algumas ideias podem passar pela sua cabeça. Em sã consciência, acredito que nenhuma delas seria ignorar o respeito ao Tempo, arruinar o cuidado empenhado na produção do livro, apartá-lo de sua capa, romper suas preciosas costuras, separar folha a folha, ou livro a livro (Livro de Ruth, Livro de Jó, Sermão das Montanhas…), desmontar o trabalho de Gutemberg e remontá-lo a seguir em folhas soltas, ou em grupos delas, para expor a Bíblia à venda – aos pedaços.
Pois foi isso que fez o livreiro húngaro Gabriel Wells, em 1921, após adquirir um dos únicos exemplares remanescentes da obra de Gutemberg.
O mundo literário, histórico, religioso de Nova Iorque ergueu as mãos em pânico. Uma ofensa contra a História! – denunciavam uns. Sacrilégio! – bradavam outros. Vandalismo! – esbravejavam aos quatro ventos.
Já no mundo das instituições incapacitadas de possuir a Bíblia original, no universo dos colecionadores leigos e ambiciosos, no planeta mais restrito dos milionários interessados em enriquecer suas bibliotecas e impressionar concorrentes, nesses círculos de alta qualificação as mãos ergueram-se a cada lance oferecido nos leilões dos fragmentos bíblicos, nos Estados Unidos e na Europa.
Isso tudo é contado em detalhes no livro Noble fragments: the maverick who broke up the world’s greateat book (traduzo eu: Fragmentos nobres: o inconformista que desmontou o mais importante livro do mundo), escrito pelo australiano Michael Visontay, e publicado em 2024.
O livro é lido com um romance policial. Um a um, uma a uma, o autor vai descobrindo onde se encontram hoje as partes da Bíblia desfeita – ou seus fragmentos, como preferiu Wells –, enquanto percorre a história de seus ascendentes, deparando-se pela primeira vez com o sofrimento enfrentado pelas famílias de seus pais, judeus húngaros que buscaram, como o fizeram inúmeros judeus, reiniciar a vida pós-guerra na Austrália, distanciando-se o mais possível da sangrenta Europa.
Raízes familiares envolvem a escrita do livro. O jornalista Visontay descobriu que o tio-avô da segunda esposa de seu pai era o dito Gabriel Wells, o que se fez suficiente para ativar seus instintos de competente repórter investigativo. Não sossegaria enquanto não conseguisse rastrear o paradeiro das folhas isoladas, e dos capítulos bíblicos espalhados por todos os Continentes.
Os seguidos leilões, realizados pelas mais importantes casas leiloeiras, dispararam o valor dos fragmentos a cifras estratosféricas, beirando meio milhão de dólares por uma simples folha, traçada em letras góticas, enriquecida por iluminuras e capitulares, impressa em papel pergaminho com a tinta de prodigiosa duração criada pelo próprio Gutemberg.
O desmonte da Bíblia trouxe ainda um resultado interessante. À medida que os proprietários das folhas e capítulos faleciam, legavam sua posse a bibliotecas, universidades e instituições culturais, ou recomendavam a seus herdeiros assim também o fizessem.
Ou seja, aquelas pessoas que jamais teriam acesso próximo à Bíblia de Gutemberg – leia-se, nós e uns 99,9% da Terra –, podiam agora ver de perto partes delas. É bem verdade que os fragmentos repousam protegidos por detrás de mostruários de vidro, intocáveis, em ambientes quase sagrados, mas lá se encontram prontos para o deslumbramento dos olhos de quem os vê.
Assim como a determinação de Gutemberg levou à impressão do livro sagrado, a heresia de George Wells, ao esquartejar a Bíblia, possibilitou expandir a percepção e repartir o conhecimento para um número maior de pessoas –, como deve sempre ser feito.
