Recordação, lembrança, memória, “deslembramento”, esquecimento e história
[“Le passé est ma saison preferée”, Gestrude Stein]
Incontornável que, em um texto sobre tais artefatos, que fazem ou desvirtuam as lembranças e a história, seja possível esquecer Paul Ricoeur. E de trazer alguns retalhos de um pensamento enriquecedor. A memória, como “província da imaginação”, numa alusão a Montaigne e Pascal, é percepção sua.
“É sob o signo da associação de ideias que está situada essa espécie de curto circuito entre memória e imaginação, […] assim, a memória reduzida à rememoração, opera na esteira da imaginação” [Ricoeur, “ memória, a história, o esquecimento”, Editira UNICAMP, Campinas, 2020, p.25].
O passado, assim como a realidade, são captados pelos nossos olhos conforme a redução operada pelas nossas preferências. Com eles, passado e realidade, construímos a imagem que possa explicar a nossa “visão” dos fatos e da realidade, sob a narrativa na qual pretendemos encerrá-los como verdadeiros.
Em um mesmo júri ou nas contendas da justiça, o mesmo fato, como as mesmas circunstâncias pode suscitar depoimentos e certezas diversas, versões contraditórias.
Recordar ou lembrar fatos, os guardados de registros longínquos, é um mergulho de escafandro, coleta ou revolvimento nas regiões recônditas do passado. As recordações e lembranças que nos incomodam, reservamo-las para o nosso analista, porém damos destaque às que nos agradam, nos fortalecem e nos abastecem de orgulho.
A memória é uma construção diligente, o ordenamento das lembranças que queremos salvar, em nosso favor para compor a nossa biografia ou para reconstituir imagens de uma história de vida consistente, ainda que pouco verdadeira.
De um modo geral, nela recolhemos o passado que pretendemos preservar e defender do nosso patrimônio acumulado de experiências vividas ou da realidade das quais fomos testemunhas e que povoam o nosso imaginário. E damo-lhe fidedignidade.
O esquecimento é um processo ditado pelo inconsciente ou, em casos particulares, intencionalmente e de forma deliberada empregado para afastar as lembranças amargas e as sobras incômodas de um passado persistente.
O ”deslembramento”, verbete ausente do nosso léxico, é uma classificação que encontrei para as vinditas da “memória”. Falta patenteá-la. Trata-se, nesse caso, de operação solerte, de um perverso processo de desconstrução de prestígio, procedimento usual na política e entre intelectuais.
A história, finalmente, é muito mais do que uma narrativa linear de fatos, datas e personagens. Desde a “École des Annales”, a história ganhou, entretanto, cidadania acadêmica, com o auxílio e arrimo de avaliações fundamentadas nos métodos das ciências sociais. A “cientificidade” desta disciplina não escaparia, todavia, aos ditames dos dogmas da fé, menos ainda da pressão incontrolável das ideologias.
Da mesma forma que, desde a Antiguidade, as vitórias, as derrotas e os grandes feitos civilizacionais foram escritos e celebrados pelos vencedores, aqueles heróis sobreviventes de uma interminável aventura de conquistas e derrotas, ao longo do tempo.