Nem todo poder se faz com gritos. Alguns se constroem no silêncio dos corredores largos, entre estantes de livros e canetas que assinam o destino de milhões. Há homens que não precisam de aplauso nem palanque. Basta-lhes a sombra de uma toga e o verniz do saber jurídico. São esses que, sorrindo pouco e falando com cautela, concentram em si um poder que já não se explica pela lógica da República.
Certa vez, um desses senhores chamou atenção de quem ainda insiste em fazer perguntas. Não por sua voz, que ecoa com autoridade nas sessões públicas. Mas por um detalhe prosaico: seus imóveis. Muitos. Valiosos. Comprados à vista, como se a vida pública tivesse, de repente, se tornado uma escada rolante para a abastança. Nada de parcelamentos, financiamentos ou apertos de orçamento. Apenas escrituras, transferências e cifras que não cabem na conta da maioria.
Não se acusou crime. Não se gritou corrupção. Apenas se perguntou: como? A resposta veio seca, embalada no jargão: está tudo declarado. E talvez estivesse mesmo. Mas há coisas que não se declaram, sentem-se. Como a estranheza de ver um servidor da ordem ascender tão rapidamente à classe dos senhores da pedra e do vidro.
Naqueles dias, um grupo de jornalistas ousou contar essa história. Publicaram, documentaram, abriram a cortina sem rasgá-la. Fizeram o que se espera de quem não tem medo do eco de suas próprias palavras. Foram precisos, respeitosos e firmes. Mas incomodaram. E quando se incomoda os que vivem no alto, o peso não é apenas institucional. É simbólico. É o da mordaça. O da intimidação. O da ameaça velada que paira sobre quem ousa desconfiar.
Hoje, esse jornal já não existe. Sucumbiu à falta de patrocínio e ao excesso de verdades indigestas. Mas seu legado permanece. Foi ele quem mostrou que, num país onde perguntar já é quase crime, escrever pode ser ato de resistência.
O personagem daquela matéria continua em cena. Cada vez mais poderoso. Cada vez mais inatingível. Já não compra à vista, compra o tempo. E o tempo, no país da toga eterna, custa caro.
Mas enquanto houver alguém para contar essa história, ainda que sob pseudônimo, com metáfora, ou entre as frestas da linguagem, a verdade, mesmo sufocada, continuará respirando.
